A primeira vez
Entro numa casa de banho vazia. Olho para o espelho e reparo que o meu corpo chora apesar do ar condicionado. As lágrimas que não são lágrimas ensopam-me o cabelo, o colarinho, a camisa azul clara que horas antes me parecia perfeita. Isolo-me de ninguém, trancado num destes compartimentos que me fazem sempre pensar em sexo rápido com mulheres tão reais como hologramas. Consigo ainda ouvir a música abafada, as gargalhadas ébrias e o barulho dos copos mas tudo me parece agora outro mundo, tão distante como sentir-me feliz. Respiro fundo e tiro um pequeno saco do bolso onde costumo guardar as moedas. O meu coração parece implodir a cada batida, tão forte que sinto um pulsar na garganta que me sufoca. Coloco a cocaína no topo de cerâmica da retrete. Enrolo uma nota de cinco euros e penso no jeito que me daria agora uma caneta Bip, as mesmas que utilizava na primária para colocar bolas de papel no cabelo encoracolado da rapariga sentada à minha frente. Rio-me sozinho da ideia de tubos como armas – canhões, pistolas, canudos de plástico munidos de setas de papel. Encaro-me como uma vítima voluntária, a personagem num filme negro que apenas serve de “comic relief” para todos os actores relevantes. Espalho um pouco do pó branco e divido-o em duas linhas compridas e finas. Inspiro o mais fundo que consigo. Quando olho para aquela superfície tão branca que quase me encadeia, reparo que falhei. A inoperância dos inexperientes. Tento de novo e a cocaína invade-me a narina e desce pela garganta com a força de um sabor azedo e ácido e inesquecível. Antes que me falte a coragem, snifo pela segunda vez e todos as sensações se repetem. A música parece agora estar mais alta. Alguém entra e por momentos fico em completo silêncio. É como se o mundo me viesse bater à porta, um cobrador de dúvidas a pedir explicações impossíveis e exigindo respostas para perguntas que nunca foram confessadas. A casa de banho transforma-se na respiração de ambos. Quero saber quem ele é, qual a sua estória. Quando sai, numa nuvem de indiferença e invisibilidade, sento-me de novo sozinho. Tão sozinho como sempre me senti.
C. espera no bar. Olha para mim com ar curioso, quer ler reacções, atitudes, comportamento, discurso, linguagem corporal. Não lhe dou nada. “Sentes-te como se tivesses algo alojado no fundo da tua garganta, algo que te apetece cuspir?”. Sim. “Sentes um sabor ácido e amargo?” Sim. “Sentes que não consegues estar quieto, que estás a sapatear sentado, que os teus dedos tocam uma melodia absurda no balcão?’”. Sim. “Sentes-te bem?”. Sim (minto). Estou desperto mas há muito tempo que isso deixou de ser motivo de felicidade. Apetece-me dizer-lhe que experimentei cocaína pela mesma razão que começei agora a fumar. Quero confessar que preciso de descobrir se estou vivo porque me sinto morto. Tenho pulsação, se me picarem com uma agulha dói. Mas existem formas de suícidio em que continuamos vivos. Mortos sem morrermos. Actividade cerebral reduzida, tensão arterial irregular, contagem de esperma abaixo da média, qualidades sociais nulas. Estou aqui mas na verdade não estou. Estas verdades apertam-me o peito e sinto que engasgo, como alguém que tenta controlar o vomitado. Preciso desabafar mas não o faço, nunca. Prefiro pedir mais uma cerveja e oferecer um sorriso à M. que me serve copos, investigar o bar à procura de mulheres que cruzam as pernas com elegância sexual. Decido afundar esta angústia em álcool e sexo, fingir que tudo isto não é mais do que uma fase infantil, o resultado de dúvidas resultantes de trabalhos incompletos e não apreciados. Entendo que me sinto castrado pela minha falta de talento, assombrado por ambições demasido elevadas para as minhas capacidades. E quero que tudo isto se foda. A minha sede aumenta. Uma morena de sapatos altos parece disposta a descobrir a verdade sobre a influência da cocaína no desempenho sexual. Sapateio parado no chão de madeira. Peço mais uma cerveja, faço mais um sorriso, dou uma palmada nas costas do C. e levanto-me. Enquanto caminho na direcção de mais uma noite que não existirá dentro de um mês, tenho um último pensamento: Espero que a segunda vez que morrer seja mais eficaz.
Entro numa casa de banho vazia. Olho para o espelho e reparo que o meu corpo chora apesar do ar condicionado. As lágrimas que não são lágrimas ensopam-me o cabelo, o colarinho, a camisa azul clara que horas antes me parecia perfeita. Isolo-me de ninguém, trancado num destes compartimentos que me fazem sempre pensar em sexo rápido com mulheres tão reais como hologramas. Consigo ainda ouvir a música abafada, as gargalhadas ébrias e o barulho dos copos mas tudo me parece agora outro mundo, tão distante como sentir-me feliz. Respiro fundo e tiro um pequeno saco do bolso onde costumo guardar as moedas. O meu coração parece implodir a cada batida, tão forte que sinto um pulsar na garganta que me sufoca. Coloco a cocaína no topo de cerâmica da retrete. Enrolo uma nota de cinco euros e penso no jeito que me daria agora uma caneta Bip, as mesmas que utilizava na primária para colocar bolas de papel no cabelo encoracolado da rapariga sentada à minha frente. Rio-me sozinho da ideia de tubos como armas – canhões, pistolas, canudos de plástico munidos de setas de papel. Encaro-me como uma vítima voluntária, a personagem num filme negro que apenas serve de “comic relief” para todos os actores relevantes. Espalho um pouco do pó branco e divido-o em duas linhas compridas e finas. Inspiro o mais fundo que consigo. Quando olho para aquela superfície tão branca que quase me encadeia, reparo que falhei. A inoperância dos inexperientes. Tento de novo e a cocaína invade-me a narina e desce pela garganta com a força de um sabor azedo e ácido e inesquecível. Antes que me falte a coragem, snifo pela segunda vez e todos as sensações se repetem. A música parece agora estar mais alta. Alguém entra e por momentos fico em completo silêncio. É como se o mundo me viesse bater à porta, um cobrador de dúvidas a pedir explicações impossíveis e exigindo respostas para perguntas que nunca foram confessadas. A casa de banho transforma-se na respiração de ambos. Quero saber quem ele é, qual a sua estória. Quando sai, numa nuvem de indiferença e invisibilidade, sento-me de novo sozinho. Tão sozinho como sempre me senti.
C. espera no bar. Olha para mim com ar curioso, quer ler reacções, atitudes, comportamento, discurso, linguagem corporal. Não lhe dou nada. “Sentes-te como se tivesses algo alojado no fundo da tua garganta, algo que te apetece cuspir?”. Sim. “Sentes um sabor ácido e amargo?” Sim. “Sentes que não consegues estar quieto, que estás a sapatear sentado, que os teus dedos tocam uma melodia absurda no balcão?’”. Sim. “Sentes-te bem?”. Sim (minto). Estou desperto mas há muito tempo que isso deixou de ser motivo de felicidade. Apetece-me dizer-lhe que experimentei cocaína pela mesma razão que começei agora a fumar. Quero confessar que preciso de descobrir se estou vivo porque me sinto morto. Tenho pulsação, se me picarem com uma agulha dói. Mas existem formas de suícidio em que continuamos vivos. Mortos sem morrermos. Actividade cerebral reduzida, tensão arterial irregular, contagem de esperma abaixo da média, qualidades sociais nulas. Estou aqui mas na verdade não estou. Estas verdades apertam-me o peito e sinto que engasgo, como alguém que tenta controlar o vomitado. Preciso desabafar mas não o faço, nunca. Prefiro pedir mais uma cerveja e oferecer um sorriso à M. que me serve copos, investigar o bar à procura de mulheres que cruzam as pernas com elegância sexual. Decido afundar esta angústia em álcool e sexo, fingir que tudo isto não é mais do que uma fase infantil, o resultado de dúvidas resultantes de trabalhos incompletos e não apreciados. Entendo que me sinto castrado pela minha falta de talento, assombrado por ambições demasido elevadas para as minhas capacidades. E quero que tudo isto se foda. A minha sede aumenta. Uma morena de sapatos altos parece disposta a descobrir a verdade sobre a influência da cocaína no desempenho sexual. Sapateio parado no chão de madeira. Peço mais uma cerveja, faço mais um sorriso, dou uma palmada nas costas do C. e levanto-me. Enquanto caminho na direcção de mais uma noite que não existirá dentro de um mês, tenho um último pensamento: Espero que a segunda vez que morrer seja mais eficaz.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home