Rádio
A: Boa noite. Está no ar.
B: Boa noite, Tiago. Como é que estás?
A: Muito bem, obrigado. Estou a falar com?
B: Ricardo Mendes. Quero te dizer que sou um enorme...
A: E está a ligar de?
B: Lisboa. Eu sempre...
A: E o que faz Ricardo?
B: Guio um táxi. Sabes que ouço...
A: E está a ligar-nos porque?
B: Bem, primeiro quero dizer que o teu programa é a minha companhia nocturna dos últimos dez anos. Sinto que te conheço apesar de ser a primeira vez que ligo. E quero agradecer-te.
A: Não tem nada que agradecer. Eu é que agradeço por ouvir.
B: Não, não, não, obrigado eu Tiago.
A: Obrigado Ricardo. Diga lá então o que é que se passa.
B: Telefono para pedir desculpa...
A: Desculpa?
B: Sim.
A: Quer pedir desculpa pelo quê?
B: Pelo estado das coisas, é que...
A: Quais coisas, Ricardo?
B: ...eu não sabia...
A: Quais coisas?
B: ...mas sei também que a ignorância da lei não serve de atenuante...
A: Ricardo, Ricardo, Ricardo...
B: Sim?
A: Uma coisa de cada vez. O que é que aconteceu?
B: É que isto está tudo uma merda...
A:... Ricardo, não utilize vernáculo...
B: Vernáculo?
A: Palavrões. Continue...
B:... é que isto está tudo uma porcaria, mas eu não sabia quem era. Só descobri quando...
A: Descobriu o quê?
B: Que sou Deus mas eu já devia saber, porque Jesus também era humano...
A: Você é Deus?
B: Sim.
A: Você, Ricardo Mendes, taxista em Lisboa, é Deus.
B: Exacto.
A: Ricardo?
B: Sim?
A: Custa-me a acreditar.
B: Eu compreendo.
A: Compreende que custa a acreditar. Um taxista de Lisboa...
B: Jesus era carpinteiro.
A: Sim, Ricardo, Jesus era carpinteiro. Mas você não é Deus. (pausa)
B: Tiago?
A: Sim.
B: Como é que sabes que não sou Deus?
A: (pausa) Sabes que mais, Ricardo. Vamos fazer o contrário. Como é que você sabe que é Deus?
B: Ora bem, então foi o seguinte. Ainda há menos de três horas peguei dois clientes que queriam ir para Campo de Ourique...
A:... Que tipo de clientes?
B:... gente bem parecida, um tipo bronzeado e alto e uma miúda gira, loira. Quando parei o carro, nem tive tempo de me virar para trás. Senti o cano de uma pistola na minha nuca...
A: ... isto em Campo de Ourique...
B:... exacto....
A:... continue....
B: O tipo disse que se me mexesse um centímetro que fosse, que disparava. Fechei os olhos e comecei a rezar. Nunca rezei com tanta força. Não faço ideia de quanto tempo passou mas quando abri os olhos eles já tinham ido à vida deles...
A: ...Ricardo?
B: Sim?
A: Primeiro, quero lamentar o acontecido e desejar que esses criminosos sejam capturados. Fico contente ainda que tenha escapado ileso ao percalço...
B:...obrigado...
A: ...mas nada disso me diz que você é Deus...
B: .... Tiago?
A: Ricardo?
B: Foi quando abri os olhos que percebi.
A: Percebeu o quê?
B: Que enquanto rezava, estava apenas a falar comigo próprio.
A: (pausa) Ricardo...
B: Sou eu que ouço as minhas orações...
A: Ricardo...
B: Sou eu que controlo a vida...
A: Ricardo...
B:...não uma entidade misteriosa...
A: Ricardo...
B:...Tiago?
A: Segundo o seu ponto de vista, não seriamos todos Deus? Todos nós que rezamos? E aqueles que não rezam? Seriam excluídos dessa divindade humana?
B: Não, Tiago, espera...
A:...e imaginando que somos todos Deus, muitos de nós não estamos preparados para essa tarefa. Eu não quero essa responsabilidade!
B:... mas Tiago...
A:... não será melhor deixar as coisas como estão? Deus no seu trono lá em cima, nós aqui em baixo a pecar para depois sermos perdoados? Não é melhor Ricardo?
B:... Eu...
A: Não é mais fácil? Não complicar as coisas? Mesmo que seja Deus? Até porque se for mesmo Deus, aconselho-lhe a não dizer nada a ninguém. Nada. Neste momento tem livros escritos, best sellers, sobre si, as pessoas matam-se umas às outras em seu nome, esfolam os joelhos para lhe agradecerem por nada... a campanha de markting está a resultar de forma esplendorosa.
B: Eu...
A: Está no auge da sua carreira como entidade divina. Quer estragar tudo? Quer mesmo passar de Deus todo poderoso para Deus, o condutor de táxi, Ricardo?
B:... eu... Jesus era carpinteiro... não seria melhor todos assumirmos a responsabilidade pelo nosso destino e acções...
A: Mas veja o que aconteceu a Jesus...
B: Pois...
A: Tenho razão?
B: Eu...
A: Tenho razão, Ricardo?
B: Talvez...
A: Talvez?
B: Sim. Sim.
A: OK, Ricardo, obrigado por ter telefonado. Resto de uma boa noite. E não confie em tipos bronzeados. Estamos em Janeiro, por amor de Deus. (pausa). Boa noite, está no ar.
A: Boa noite. Está no ar.
B: Boa noite, Tiago. Como é que estás?
A: Muito bem, obrigado. Estou a falar com?
B: Ricardo Mendes. Quero te dizer que sou um enorme...
A: E está a ligar de?
B: Lisboa. Eu sempre...
A: E o que faz Ricardo?
B: Guio um táxi. Sabes que ouço...
A: E está a ligar-nos porque?
B: Bem, primeiro quero dizer que o teu programa é a minha companhia nocturna dos últimos dez anos. Sinto que te conheço apesar de ser a primeira vez que ligo. E quero agradecer-te.
A: Não tem nada que agradecer. Eu é que agradeço por ouvir.
B: Não, não, não, obrigado eu Tiago.
A: Obrigado Ricardo. Diga lá então o que é que se passa.
B: Telefono para pedir desculpa...
A: Desculpa?
B: Sim.
A: Quer pedir desculpa pelo quê?
B: Pelo estado das coisas, é que...
A: Quais coisas, Ricardo?
B: ...eu não sabia...
A: Quais coisas?
B: ...mas sei também que a ignorância da lei não serve de atenuante...
A: Ricardo, Ricardo, Ricardo...
B: Sim?
A: Uma coisa de cada vez. O que é que aconteceu?
B: É que isto está tudo uma merda...
A:... Ricardo, não utilize vernáculo...
B: Vernáculo?
A: Palavrões. Continue...
B:... é que isto está tudo uma porcaria, mas eu não sabia quem era. Só descobri quando...
A: Descobriu o quê?
B: Que sou Deus mas eu já devia saber, porque Jesus também era humano...
A: Você é Deus?
B: Sim.
A: Você, Ricardo Mendes, taxista em Lisboa, é Deus.
B: Exacto.
A: Ricardo?
B: Sim?
A: Custa-me a acreditar.
B: Eu compreendo.
A: Compreende que custa a acreditar. Um taxista de Lisboa...
B: Jesus era carpinteiro.
A: Sim, Ricardo, Jesus era carpinteiro. Mas você não é Deus. (pausa)
B: Tiago?
A: Sim.
B: Como é que sabes que não sou Deus?
A: (pausa) Sabes que mais, Ricardo. Vamos fazer o contrário. Como é que você sabe que é Deus?
B: Ora bem, então foi o seguinte. Ainda há menos de três horas peguei dois clientes que queriam ir para Campo de Ourique...
A:... Que tipo de clientes?
B:... gente bem parecida, um tipo bronzeado e alto e uma miúda gira, loira. Quando parei o carro, nem tive tempo de me virar para trás. Senti o cano de uma pistola na minha nuca...
A: ... isto em Campo de Ourique...
B:... exacto....
A:... continue....
B: O tipo disse que se me mexesse um centímetro que fosse, que disparava. Fechei os olhos e comecei a rezar. Nunca rezei com tanta força. Não faço ideia de quanto tempo passou mas quando abri os olhos eles já tinham ido à vida deles...
A: ...Ricardo?
B: Sim?
A: Primeiro, quero lamentar o acontecido e desejar que esses criminosos sejam capturados. Fico contente ainda que tenha escapado ileso ao percalço...
B:...obrigado...
A: ...mas nada disso me diz que você é Deus...
B: .... Tiago?
A: Ricardo?
B: Foi quando abri os olhos que percebi.
A: Percebeu o quê?
B: Que enquanto rezava, estava apenas a falar comigo próprio.
A: (pausa) Ricardo...
B: Sou eu que ouço as minhas orações...
A: Ricardo...
B: Sou eu que controlo a vida...
A: Ricardo...
B:...não uma entidade misteriosa...
A: Ricardo...
B:...Tiago?
A: Segundo o seu ponto de vista, não seriamos todos Deus? Todos nós que rezamos? E aqueles que não rezam? Seriam excluídos dessa divindade humana?
B: Não, Tiago, espera...
A:...e imaginando que somos todos Deus, muitos de nós não estamos preparados para essa tarefa. Eu não quero essa responsabilidade!
B:... mas Tiago...
A:... não será melhor deixar as coisas como estão? Deus no seu trono lá em cima, nós aqui em baixo a pecar para depois sermos perdoados? Não é melhor Ricardo?
B:... Eu...
A: Não é mais fácil? Não complicar as coisas? Mesmo que seja Deus? Até porque se for mesmo Deus, aconselho-lhe a não dizer nada a ninguém. Nada. Neste momento tem livros escritos, best sellers, sobre si, as pessoas matam-se umas às outras em seu nome, esfolam os joelhos para lhe agradecerem por nada... a campanha de markting está a resultar de forma esplendorosa.
B: Eu...
A: Está no auge da sua carreira como entidade divina. Quer estragar tudo? Quer mesmo passar de Deus todo poderoso para Deus, o condutor de táxi, Ricardo?
B:... eu... Jesus era carpinteiro... não seria melhor todos assumirmos a responsabilidade pelo nosso destino e acções...
A: Mas veja o que aconteceu a Jesus...
B: Pois...
A: Tenho razão?
B: Eu...
A: Tenho razão, Ricardo?
B: Talvez...
A: Talvez?
B: Sim. Sim.
A: OK, Ricardo, obrigado por ter telefonado. Resto de uma boa noite. E não confie em tipos bronzeados. Estamos em Janeiro, por amor de Deus. (pausa). Boa noite, está no ar.
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