domingo, abril 04, 2004

Heresia

No outro dia, telefonei a deus. Arranjei o número de telemóvel dele através de um amigo comum. Tentei ligar-lhe mas estava desligado. Soube depois que passa os fins de semana no Colombo, vestido num fato de treino azul da Nike, atacadores desapertados e barba por fazer. Come um hambúrguer e bebe Coca-Cola, observa as montras durante horas porque se diverte com os erros humanos. Depois, compra bilhete para uma comédia romântica onde nunca se ri. Deixei mensagem. Respondeu no dia seguinte e combinámos ir beber uma imperial ao final da tarde.
Deus está gordo, como a maioria dos reformados. Quando fala contigo, costas inclinadas contra a cadeira, entrelaça os dedos em cima do estômago e brinca com os polegares. O fim do sol ainda o encanta, utiliza óculos escuros porque “existem tipos de beleza tão puros que precisam de filtro”. Descasca amendoins com uma só mão e nunca te olha de frente. Perguntei-lhe o que é que se passa. “O que é que se passa com o quê?”. Com tudo, respondi.
“Não sei quando é começou este rumor de que sou o responsável. Acusarem-me, ou darem-me mérito, se quisermos ver as coisas de outra forma, é o mesmo que criticarem o homem das obras pelo facto de não haver água quente num prédio ou o elogiarem porque os acabamentos são bonitos. Não tenho nada a ver com isso, não é minha responsabilidade, orientem-se. O meu trabalho está feito. Desenmerdem-se”.
“Não julgo ninguém. Podem dar porrada à vossa mulher sempre que o Benfica perde, que não me importo. Podem snifar cocaína até descobrirem que os vossos olhos já não fecham, que não me importo. Podem ver televisão todos os dias, episódios consecutivos dos morangos com açúcar, evitar qualquer tipo de esforço para comunicar com o vosso próximo, que não me importo. Esta é a vossa vida, não a minha. E se tiverem um problema com mundo que criei, existe uma solução muito simples. Façam o vosso. Não é tão difícil como parece. Eu demorei apenas uma semana. Claro que houve imperfeições. Mas também existem coisas brilhantes. Como os grãos de café e os dinossáurios.”
Deus é uma criatura amarga, mas não indiferente. Só quem ama pode desiludir-se. Convidou-me depois para jantar, falámos de futebol, política e orgasmos femininos. Jogámos matraquilhos no Bairro Alto e saímos invictos. Disse-me que tinha fixado residência em Portugal porque é o único país do mundo onde “não fazer nada pode ser um trabalho muito bem pago”. Bebeu demais e acabei por o meter num táxi. Adormeceu no banco de trás antes de dizer o destino. O condutor arrancou sem fazer ideia para onde ia, mas a algum sítio tinha que chegar. Não se pode andar para sempre. Fui para casa e fumei um cigarro antes de me deitar. Talvez aquele tipo não fosse deus. Mas soava a ele.
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