segunda-feira, maio 17, 2004

Para I.

Dia de sol

Algo nasce, não sei bem o quê, na minha pele quando olho para o mar. Um cheiro que me é estranho, a sensação de inexistência perante a explosão de azul. Sou apenas carne. Os pés enterrados na areia, sapatos e meias pretas que perderam funções, joelhos juntos e apertados contra o peito com uma corrente de braços. Há a brisa que se transforma em vento e o sol que devia significar calor mas não passa de ardor, as rugas ganham vida, todos os erros e defeitos desenhados na face, as bruxas da feira popular estão erradas, são as linhas debaixo dos olhos que revelam o futuro. As mãos são efémeras, gastas em actos mundanos, pratos lavados, cortes de papel, unhas roídas não por nervosismo, apenas algo para fazer nos momentos de tédio.

À minha volta estão famílias e sacos de plástico, cães presos pela trela a chapéus de sol, homens que percorrem círculos a vender gelados e bolas de Berlim, toalhas estendidas e o cheiro a creme bronzeador. Procura-se beleza como se esta fosse uma questão de cor. Alguns correm junto à água salgada, outros cruzam os braços e encaram-na em silêncio, talvez escutem um monólogo natural e biológico, cada vaga de ondas um levantar de voz e um gesto impulsivo e estudado. Mas se o mar fala comigo, não percebo a mensagem.

Uma loira que passa por mim e não sorri, olha porque é estranho alguém estar vestido com um fato azul na praia, descalço e sem óculos escuros. Sigo-a até à barraca onde vendem garrafas de plástico com água gelada. Toco-lhe no ombro porque ela me parece uma entidade transcendente e eterna. Toco-lhe para desafiar o intocável.

Isto não é uma festa formal, sabes?

Não digo nada, não tenho nada para dizer, ela roda a tampa de plástico e estende o braço. Bebo dois golos que me fazem doer os dentes. Os olhos abrem.

Estou apenas a esconder os pelos dos ombros.
Parece-me que queres esconder bastante mais do que isso. Sabes, existe quem me ache bonita. Mas penso que sou simples.
Talvez seja o facto de acreditares que és simples que te torna bonita.
As pessoas que olham para mim, elas não sabem que o meu corpo é sagrado.
O meu não. Não passa de osso, carne, pele, sangue, suor e cicatrizes. Está usado.
Adeus, homem de negócios.
Adeus, mulher dourada.

Sento-me numa cadeira de madeira e observo-a enquanto regressa e se transforma numa sombra, todos somos contornos quando enfrentamos o sol. Procuro um cigarro nos bolsos mas apenas encontro um maço vazio. Sinto-lhe o olhar, que a sua boca se move quando pensa em mim, a revelação do branco a cada toque de lábios. Tem olhos verdes e esfrega os dedos dos pés para se livrar de milhares de grãos de areia. Levanto-me e procuro o carro. Os sapatos ficam para trás num acto de lembrança. Esta é uma estória de amor eterna que apenas durou um segundo, canção sem melodia, carta de amor em branco porque sem esperança apenas tenho espaço. E, se não perder algo, qualquer coisa, terei dúvidas de que alguma vez existiu.
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