O fim do talento
Lembro-me da primeira vez que assisti a “Annie Hall”. O brilhantismo do diálogo, a originalidade, Diane Keaton, Marshall McLuhan, Paul Simon num fato branco e a certeza de que a vida era exactamente como um filme do Woody Allen. Recordo também “Manhattan”, a magnífica música de Gershwin, Nova Iorque a preto e branco, sexo tão intímo como um apertar de mãos. Sorrio quando penso em “Everybody Says I Love You”, Paris e Veneza, Goldie Hawn numa dança à beira do Sena que ignora as leis da gravidade, Natalie Portman a cantar “I’m through with love, I’ll never love again”. O atendedor de chamadas de Zeus em “Mighty Aphrodite”, a interrupção do discurso de Hitler em “Zelig”, o actor desfocado em “Deconstructing Harry”, a modelo multiorgásmica de “Celebrity”. Momentos que me inspiraram, responsáveis pelo meu sonho de escrever filmes.
Leio a crítica num jornal. ““Anything Else” é como uma má cópia do Woody Allen. É difícil não perceber que este venerável autor já fez o mesmo filme quinze vezes com resultados superiores. É como ouvir um grupo de rock que já foi brilhante mas que agora se limita a repetir um acto antigo e sem vigor que perde todo o significado para a audiência e para os próprios artistas.” Este ano, pela primeira vez, não pago bilhete para assistir ao projecto do realizador nova-iorquino. Vou esperar pela cassete de vídeo ou que algum canal de televisão transmita o filme num domingo de chuva. “Small Time Crooks”, “The Curse of the Jade Scorpion” ou “Hollywood Endings” serviram de lição. Na promoção de “Anything Else”, comédia romântica com Cristina Ricci e Jason Biggs, a Dreamworks e os próprios actores fizeram tudo para esconder o facto de que o filme foi realizado por Woody Allen. Ao que parece, fizeram-lhe um favor. Mas não resultou. O filme teve uma recepção crítica e pública desastrosa.
Conta-se que os amputados acordam a meio da noite com comichão na perna de plástico, que sentem dormência no braço que morreu. A reacção daqueles que perdem o talento é semelhante. Recusam-se a aceitar o fim da inspiração, exigem prolongar a carreira mas transformam-se em palhaços tristes, jogadores de futebol em final de carreira que já não conseguem correr mas que - devido à notoriedade ganha muitos anos antes – assinam um contrato milionário, mal aconselhados por agentes e amigos que não tem coragem de lhes dizer que o seu tempo já passou, que foram grandes mas agora são humanos. Woody Allen foi uma referência durante 20 anos, parte do imaginário colectivo, o símbolo vivo de neuroses urbanas e introspecção levada ao extremo. A sua rotina de trabalho é como um relógio suíço, em Nova Iorque é Outono quando as folhas das árvores de Central Park se tornam amarelas e “The Untitled Woody Allen Fall Project” está a ser rodado. Mas tudo tem um fim. Tal como a carreira de Robert DeNiro acabou há sete anos, mesmo que ele não o perceba. Quando o vejo em filmes como “Showtime” ou “Meet the Parents”, finjo que é um actor diferente. Recuso-me a compará-lo com a força de “Taxi Driver” ou “Raging Bull”, não podem ser a mesma pessoa, simultaneamente um dos melhores actores do século XX e um dos piores do século XXI . Um exemplo nacional é Herman José, apresentador, entrevistador, figura pública, mas não comediante. O que faz agora é tão patético que a audiência bate palmas apenas para o manter vivo, um calor cheio de pena e nostalgia para alguém que já não consegue fazer rir uma criança de cinco anos. Kurt Cobain escreveu na sua nota de suicídio palavras de Neil Young: “It’s better to burn out than fade away”. Não sugiro, obviamente, a morte física como resposta à perca de qualidades. A resposta está, como sempre, no meio termo. Sair em graça, comprar uma casa no Belize e passar o resto da vida à beira mar, de calções, a beber cerveja morta e com um sorriso permanente na face. Quanto a nós, amantes de cinema, nem tudo está perdido. Ainda temos os irmãos Coen.
Lembro-me da primeira vez que assisti a “Annie Hall”. O brilhantismo do diálogo, a originalidade, Diane Keaton, Marshall McLuhan, Paul Simon num fato branco e a certeza de que a vida era exactamente como um filme do Woody Allen. Recordo também “Manhattan”, a magnífica música de Gershwin, Nova Iorque a preto e branco, sexo tão intímo como um apertar de mãos. Sorrio quando penso em “Everybody Says I Love You”, Paris e Veneza, Goldie Hawn numa dança à beira do Sena que ignora as leis da gravidade, Natalie Portman a cantar “I’m through with love, I’ll never love again”. O atendedor de chamadas de Zeus em “Mighty Aphrodite”, a interrupção do discurso de Hitler em “Zelig”, o actor desfocado em “Deconstructing Harry”, a modelo multiorgásmica de “Celebrity”. Momentos que me inspiraram, responsáveis pelo meu sonho de escrever filmes.
Leio a crítica num jornal. ““Anything Else” é como uma má cópia do Woody Allen. É difícil não perceber que este venerável autor já fez o mesmo filme quinze vezes com resultados superiores. É como ouvir um grupo de rock que já foi brilhante mas que agora se limita a repetir um acto antigo e sem vigor que perde todo o significado para a audiência e para os próprios artistas.” Este ano, pela primeira vez, não pago bilhete para assistir ao projecto do realizador nova-iorquino. Vou esperar pela cassete de vídeo ou que algum canal de televisão transmita o filme num domingo de chuva. “Small Time Crooks”, “The Curse of the Jade Scorpion” ou “Hollywood Endings” serviram de lição. Na promoção de “Anything Else”, comédia romântica com Cristina Ricci e Jason Biggs, a Dreamworks e os próprios actores fizeram tudo para esconder o facto de que o filme foi realizado por Woody Allen. Ao que parece, fizeram-lhe um favor. Mas não resultou. O filme teve uma recepção crítica e pública desastrosa.
Conta-se que os amputados acordam a meio da noite com comichão na perna de plástico, que sentem dormência no braço que morreu. A reacção daqueles que perdem o talento é semelhante. Recusam-se a aceitar o fim da inspiração, exigem prolongar a carreira mas transformam-se em palhaços tristes, jogadores de futebol em final de carreira que já não conseguem correr mas que - devido à notoriedade ganha muitos anos antes – assinam um contrato milionário, mal aconselhados por agentes e amigos que não tem coragem de lhes dizer que o seu tempo já passou, que foram grandes mas agora são humanos. Woody Allen foi uma referência durante 20 anos, parte do imaginário colectivo, o símbolo vivo de neuroses urbanas e introspecção levada ao extremo. A sua rotina de trabalho é como um relógio suíço, em Nova Iorque é Outono quando as folhas das árvores de Central Park se tornam amarelas e “The Untitled Woody Allen Fall Project” está a ser rodado. Mas tudo tem um fim. Tal como a carreira de Robert DeNiro acabou há sete anos, mesmo que ele não o perceba. Quando o vejo em filmes como “Showtime” ou “Meet the Parents”, finjo que é um actor diferente. Recuso-me a compará-lo com a força de “Taxi Driver” ou “Raging Bull”, não podem ser a mesma pessoa, simultaneamente um dos melhores actores do século XX e um dos piores do século XXI . Um exemplo nacional é Herman José, apresentador, entrevistador, figura pública, mas não comediante. O que faz agora é tão patético que a audiência bate palmas apenas para o manter vivo, um calor cheio de pena e nostalgia para alguém que já não consegue fazer rir uma criança de cinco anos. Kurt Cobain escreveu na sua nota de suicídio palavras de Neil Young: “It’s better to burn out than fade away”. Não sugiro, obviamente, a morte física como resposta à perca de qualidades. A resposta está, como sempre, no meio termo. Sair em graça, comprar uma casa no Belize e passar o resto da vida à beira mar, de calções, a beber cerveja morta e com um sorriso permanente na face. Quanto a nós, amantes de cinema, nem tudo está perdido. Ainda temos os irmãos Coen.
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