quinta-feira, maio 11, 2006

Outra curta que nunca será feita
BOM DIA, PORTUGAL, por Tiago R. Santos
© por Tiago R. Santos. Todos os direitos reservados

INT. ESTÚDIO TELEVISÃO – LISBOA – MADRUGADA

JOÃO
Bom dia, Portugal. Eu sou o João Andrade, são sete da manhã, e não acredito que já estou acordado.

Há um segundo de silêncio, tempo morto no ar. JOÃO, trinta e dois anos, de quem vemos apenas o tronco, está de fato e gravata, bom aspecto, bem penteado. À sua frente estão várias folhas de papel. É mais uma edição de um programa de informação e a posição da câmara é rígida e inamovível.

Por um segundo, o olhar de João vai para alguém que está fora de câmara.

JOÃO (CONT.)
O que foi?

João olha para as páginas que estão à sua frente.

JOÃO (CONT.)
(seco e sarcástico)
Está bem, eu leio as notícias.
(pega nas folhas)
Vamos lá ver. Incêndios, o trânsito está uma merda e a IC19 parece um enorme parque de estacionamento, o Sporting perdeu - grande surpresa aqui- , insucesso escolar, Homem do Piano e Ferreira Torres. Portugal é como a terra onde o tempo parou. Todos os dias são iguais.

Novo tempo morto no ar, ninguém diz uma palavra.

JOÃO (CONT.)
(olha para alguém fora do enquadramento)
Porque é que estás a olhar para mim dessa maneira, pá? Hã, André? Mas quem é que acorda às sete da manhã para ver televisão? Sabes a que horas é que eu me levanto? Cinco e trinta. Cinco e trinta, meu. Nem sequer sabia que essa hora existia. E hoje levanto-me e ela não está lá. Isto é que são notícias em exclusivo. Cabra.

O plano da câmara continua fixo e João olha agora directamente para o espectador.

JOÃO (CONT.)
Deixem-me que vos diga uma coisa. As pessoas fecham sempre os olhos um segundo antes de um acidente. É instinto. Mas, com as mulheres, é diferente. Estamos ali, de olhos bem abertos, a pensar em nomes para o cão que lhe vamos oferecer no dia de aniversário, estava a pensar em Winston, e de repente--
(olha de novo para fora do enquadramento)
Eu não entendo. Olhem para mim. Eu sou sexy. Não sou sexy? André?

Novo segundo desconfortável de tempo morto.

JOÃO (CONT.)
André?

E mais um segundo de tempo morto.

ANDRÉ (O.S.)
És sexy, João, claro que és.

JOÃO
Achas mesmo?

Nova pausa.

ANDRÉ (O.S.)
Sim.

JOÃO
(olha de novo para o espectador, orgulhoso)
Nem mais. Mas eu não preciso de ti. Não preciso de ninguém. Eu até me rio das minhas próprias piadas.
(um segundo a olhar fixamente para a câmara)
Sabem o que é que eu não percebo? Quando é que os futebolistas se tornaram os ‘sex symbols’ das mulheres? Quando é que isto aconteceu? Quando é que aqueles broncos com a quarta classe começaram a sacar todas as gajas boas? Alguém me consegue explicar? Alguém me consegue explicar como é que a minha Inês me deixou pelo defesa esquerdo do Olivais e Moscavide?

João pára por um segundo, como se percebesse que está a perder o controlo. Respira fundo, pega nas folhas, olha para a câmara e sorri. Parece melhor, mais aliviado. Mas, de repente, envia as folhas pelo ar e levanta-se, é a primeira vez que o seu corpo se mostra por completo, revelando que está sem calças, apenas de boxers e meias pretas.

JOÃO
Que se lixe esta merda.

O FUNDO DO ECRÃ FICA NEGRO POR TRÊS SEGUNDOS COM UMA FRASE A BRANCO – “DIFICULDADES TÉCNICAS. DESCULPE O INCÓMODO”

INT. ESTÚDIO TELEVISÃO – LISBOA – MADRUGADA

O cenário é exactamente o mesmo mas, no lugar do João, está agora ANDREIA, uma jovem e bonita jornalista.

ANDREIA
Bom dia, Portugal. O meu nome é Andreia Sanches. São sete e quatro da manhã.
(uma pausa)
Em notícia exclusiva, o jornalista João Andrade tem colapso mental em directo. Não perca, já a seguir. Mas primeiro, o trânsito.

2 Comments:

Blogger Rita said...

ah, ah, ah. muito boa. faz-me lembrar qualquer coisa, isso de acordar às cinco da manhã....

maio 15, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Apos uma pesquisa achei este blog magnifico este texto esta...demais! gostei muito Parabens

fevereiro 04, 2007  

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