sexta-feira, novembro 11, 2005

(Auto-Terroristas - Continuação)

Estreia da peça de teatro ‘Valparaíso’, vinte e cinco de Fevereiro de dois mil e quatro. Segundo episódio. Os bilhetes estão esgotados há três semanas, actores mediáticos e de dentes bonitos que oferecem frases feitas na praia, promoção em canais de televisão e páginas inteiras de jornais diários. Cartazes rasgados à saida de vias rápidas onde se lê apenas ‘paraíso’. Croquetes, pastéis de nata em miniatura, martinis como aperitivo em copos baratos de plástico com casca de limão, pessoas que tentam parecer relaxadas em fatos caros. É difícil rir quando o vestido está tão apertado que respirar é um acto de esforço. Faltam cinco minutos, a multidão ganha uma regidez quase militar, grupos de dois, casais ou amigos, a cumplicidade dos sexos, a espectativa cresce. Entrevistado depois do ataque, Ricardo Filipe, dois nomes próprios, referiu que

havia no ar a sensação de que algo de especial iria acontecer

Por vezes, as premonições confundem-se com o fumo do tabaco. Lugares marcados para bilhetes indecifráveis, fila C, lugar sete, só números pares, um mundo onde o treze não existe, como se ao azar não fosse permitido acesso quando a entrada é reservada. Mulheres com lenços e argolas de prata que servem de brincos sentadas nos melhores lugares olham para trás e acenam. Depois, existe um gongo e o reflexo do movimento, pernas que se cruzam e ancas que ganham vida debaixo de tecido clássico, calças que sobem para expôr pedaços de pele e pelos e o tornozelo escondido atrás de meias pretas. As luzes desaparecem quase por completo e ninguém repara numa figura que permanece de pé. Ninguém sabe que o seu nome é Pedro Santos, engenheiro de vinte e nove anos, uma filha de quatro meses, casa no Parque das Nações, guarda roupa constituído por camisas Ralph Lauren e fatos feitos à medida, calças de ganga ao fim de semana. Ninguém suspeita quando ele caminha pelo corredor, pés que esfregam a alcatifa e mãos bem enfiadas nos bolsos. Ninguém sequer considera invulgar que ele suba os quatro degraus que levam ao palco, a cortina ainda em baixo, e se coloque no centro da estrutura de madeira. Existe apenas leve escuridão. Pedro puxa o casaco para trás e revela uma pistola. Alguns sorrisos. Tudo é um espectáculo. A arma torna-se uma extensão inofensiva do braço, a ausência da ameaça, é original, é novo, a arte procura o choque, a alteração de consciências. Tudo é permitido. O actor que não é actor sorri e coloca o cano de metal encostado ao lado direito da cabeça.

Senhores e senhoras, bem vindos. Isto não é um exercício dramático.


O lado esquerdo explode sangue e matéria, cordas manipuladas mudam de cor, o chão é aquático e espesso. O corpo de Pedro cai num barulho seco, a ferida aberta abraça a madeira e vomita-lhe pedaços de crânio e osso. Não há um único grito, não há um único aplauso. Apenas silêncio total e absoluto – uma ausência perfeita de som - numa sala onde, por um segundo, cento e vinte e quatro pessoas não tiveram coragem de respirar.

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