Crónica de um desastre anunciado (ou como hoje não tive tempo para escrever e decidi reciclar um velho texto)
Relatório Policial Nº211976
Acontecimento: Passava das cinco da manhã na cidade de Nova Iorque quando um táxi conduzido por um indivíduo do Médio Oriente que falava ao telemóvel (Nota do redactor: descrição corresponde a 99 por cento dos taxistas da cidade) embateu violentamente noutro táxi conduzido por outro indivíduo do Médio Oriente que falava ao telemóvel. (Nota do redactor: ver nota do redactor anterior). Do embate resultou um ferido ligeiro, um tal de T. R. S., Português, visto de jornalista número ADNV-213434 e empregado de mesa no restaurante Filipone (Nota do redactor: informar serviço de emigrações sobre possível situação de ilegalidade). A vítima apresentava um ligeiro corte debaixo do lábio e aparentava estar lúcido e de boa saúde (Nota do redactor: descobriu-se mais tarde que a vítima, na verdade, estava embriagado enquanto dormia sem cinto no banco de trás da viatura. Duas margaritas, três cervejas e dois Jamesons foram encontrados no seu sangue. Sim, os exames são assim tão precisos). Tudo isto antes de anunciar perante vários polícias e enfermeiros presentes na cena que, e passo a citar, "nunca tinha reparado que os elefantes podiam passear livremente de noite na Park Avenue. Olha, aquele faz-me lembrar uma antiga professora de jornalismo que tive no liceu" (Nota do redactor: todo o diálogo foi traduzido para português de forma a tornar mais fácil o seu entendimento por parte do leitor. Diz quem estava presente que não se distinguia uma única palavra do que a vítima dizia.) Poucos segundos depois a vítima, T. R. S., homem másculo e forte, desmaiou como uma menina a quem roubaram a mala. Consequência? Mais dois cortes, um ao pé da sobrancelha esquerda, outro no queixo. Perante esta tendência crónica de embater com a cara contra superfícies duras como alcatrão e ferro, os enfermeiros decidiram levar a vítima para o hospital mais próximo (Nota do redactor: Lennox Hospital, 68th e York). Durante este percurso, já com o pescoço imobilizado e a testa e os pés atados à maca, a vítima divertiu-se a ver as luzes e a ouvir a sirene: "Isto é um pouco como uma montanha russa: muitas luzes, gritos e apitos e nunca sabemos para que lado vamos virar." Mais tarde, o pânico apareceu: "A minha cara, a minha linda cara! E agora? A minha carreira de modelo? As gajas? Quero morrer! Eutanásia! Eutanásia! Eu exijo o direito à morte!" Cito a conversa entre os enfermeiros presentes: Anita - "Ele deve ter uma lesão cerebral grave". Juan - "Não. Já fizemos alguns testes e parece estar tudo em ordem." Anita - "Ele é o quê? Um idiota?". Juan - "Sim, é esse o meu prognóstico".
Ao chegar ao Hospital, a vítima estava silenciada (Nota do redactor: Anita, a enfermeira, nega estar envolvida no aparecimento de 500cc de morfina no sangue da vítima.) Na ER (Nota do redactor: Que, como os mais informados e todos os fãs do George Clooney sabem, significa Emergency Room) foram-lhe feitos todos os tipos de exames (coluna, sangue, pescoço, pernas, radiografias, vacinas para o tétano, QI). A vítima apenas chumbou em um. A confidencialidade deste relatório não me permite revelar qual. Mais tarde, ainda ligado aos monitores e a soro e com equipamento de reabilitação cardíaco ao seu lado (Nota do redactor: Não sei se estão a ver qual é o equipamento de que falo. É aquele dos filmes onde o médico coloca duas pás no peito do paciente e grita "200 volts - Clear!" e o corpo do coitado dá um salto até que ele acorda. Sim, esse equipamento) a vítima foi visitado por um cirurgião plástico que, depois de lhe tirar umas fotos às feridas (afinal a vítima sempre se tornou em modelo - para revistas médicas), coseu-lhe as três feridas (Nota do redactor: Resultados finais: 3 pontos abaixo do lábio, dez na sobrancelha e doze no queixo). Diz quem estava presente que não eram necessários tantos, mas que o médico perdeu a paciência com a perguntas do paciente (Exemplo: "Diz-me lá uma coisa, qual é o teu livro preferido, Frankenstein da Mary Shelly?). Depois, na sala das radiografias, vale a pena guardar este pedaço de diálogo para a posterioridade: T.R.S. (depois de tirar as chapas) - "Então, sempre vou sobreviver?"; Enfermeiro - "Não sei. Temos que esperar pelos resultados".
Quando estava tudo feito e dito, quando a vítima estava exausta, dorida e cozida, pouco mais houve para relatório. Há ainda a estória de como o jornalista português andava a contar às enfermeiras que as cicatrizes tinham sido feitos numa luta de bar contra três motoqueiros dos Hell Angels enquanto defendia a honra de uma menina, ou o facto de o paciente se ter decidido levantar para atender um telefone que não parava de tocar, apenas de calças, descalço e de tronco nu com fios ainda ligados ao peito e ao braço. Ou ainda como, às 11 da manhã, seis horas depois de chegar ao hospital, Tiago disse em voz alta: "Minhas senhoras, tem sido muito divertido, mas é hora de ir para casa." E como Mary, enfermeira irlandesa de cinquenta anos, lhe disse: "Keep your pants on, laddy. Just wait, will you?". Ao que ele respondeu, pescoço ainda sujo de sangue, cabelo despenteado e lábio inchado: "Mary, my love, my pants are everything I got right now". A estória continua sexta feira, quando a vítima voltar ao hospital para retirar os pontos. Até lá, T. R. S., jornalista português empregado de mesa num restaurante italiano, vai passar os dias sentado numa esplanada ao sol, cerveja na mão, a dizer para quem o quiser ouvir que não encontrou Deus no hospital; apenas uma moeda de vinte cinto cêntimos esquecida dentro de uma gaveta.
Relatório Policial Nº211976
Acontecimento: Passava das cinco da manhã na cidade de Nova Iorque quando um táxi conduzido por um indivíduo do Médio Oriente que falava ao telemóvel (Nota do redactor: descrição corresponde a 99 por cento dos taxistas da cidade) embateu violentamente noutro táxi conduzido por outro indivíduo do Médio Oriente que falava ao telemóvel. (Nota do redactor: ver nota do redactor anterior). Do embate resultou um ferido ligeiro, um tal de T. R. S., Português, visto de jornalista número ADNV-213434 e empregado de mesa no restaurante Filipone (Nota do redactor: informar serviço de emigrações sobre possível situação de ilegalidade). A vítima apresentava um ligeiro corte debaixo do lábio e aparentava estar lúcido e de boa saúde (Nota do redactor: descobriu-se mais tarde que a vítima, na verdade, estava embriagado enquanto dormia sem cinto no banco de trás da viatura. Duas margaritas, três cervejas e dois Jamesons foram encontrados no seu sangue. Sim, os exames são assim tão precisos). Tudo isto antes de anunciar perante vários polícias e enfermeiros presentes na cena que, e passo a citar, "nunca tinha reparado que os elefantes podiam passear livremente de noite na Park Avenue. Olha, aquele faz-me lembrar uma antiga professora de jornalismo que tive no liceu" (Nota do redactor: todo o diálogo foi traduzido para português de forma a tornar mais fácil o seu entendimento por parte do leitor. Diz quem estava presente que não se distinguia uma única palavra do que a vítima dizia.) Poucos segundos depois a vítima, T. R. S., homem másculo e forte, desmaiou como uma menina a quem roubaram a mala. Consequência? Mais dois cortes, um ao pé da sobrancelha esquerda, outro no queixo. Perante esta tendência crónica de embater com a cara contra superfícies duras como alcatrão e ferro, os enfermeiros decidiram levar a vítima para o hospital mais próximo (Nota do redactor: Lennox Hospital, 68th e York). Durante este percurso, já com o pescoço imobilizado e a testa e os pés atados à maca, a vítima divertiu-se a ver as luzes e a ouvir a sirene: "Isto é um pouco como uma montanha russa: muitas luzes, gritos e apitos e nunca sabemos para que lado vamos virar." Mais tarde, o pânico apareceu: "A minha cara, a minha linda cara! E agora? A minha carreira de modelo? As gajas? Quero morrer! Eutanásia! Eutanásia! Eu exijo o direito à morte!" Cito a conversa entre os enfermeiros presentes: Anita - "Ele deve ter uma lesão cerebral grave". Juan - "Não. Já fizemos alguns testes e parece estar tudo em ordem." Anita - "Ele é o quê? Um idiota?". Juan - "Sim, é esse o meu prognóstico".
Ao chegar ao Hospital, a vítima estava silenciada (Nota do redactor: Anita, a enfermeira, nega estar envolvida no aparecimento de 500cc de morfina no sangue da vítima.) Na ER (Nota do redactor: Que, como os mais informados e todos os fãs do George Clooney sabem, significa Emergency Room) foram-lhe feitos todos os tipos de exames (coluna, sangue, pescoço, pernas, radiografias, vacinas para o tétano, QI). A vítima apenas chumbou em um. A confidencialidade deste relatório não me permite revelar qual. Mais tarde, ainda ligado aos monitores e a soro e com equipamento de reabilitação cardíaco ao seu lado (Nota do redactor: Não sei se estão a ver qual é o equipamento de que falo. É aquele dos filmes onde o médico coloca duas pás no peito do paciente e grita "200 volts - Clear!" e o corpo do coitado dá um salto até que ele acorda. Sim, esse equipamento) a vítima foi visitado por um cirurgião plástico que, depois de lhe tirar umas fotos às feridas (afinal a vítima sempre se tornou em modelo - para revistas médicas), coseu-lhe as três feridas (Nota do redactor: Resultados finais: 3 pontos abaixo do lábio, dez na sobrancelha e doze no queixo). Diz quem estava presente que não eram necessários tantos, mas que o médico perdeu a paciência com a perguntas do paciente (Exemplo: "Diz-me lá uma coisa, qual é o teu livro preferido, Frankenstein da Mary Shelly?). Depois, na sala das radiografias, vale a pena guardar este pedaço de diálogo para a posterioridade: T.R.S. (depois de tirar as chapas) - "Então, sempre vou sobreviver?"; Enfermeiro - "Não sei. Temos que esperar pelos resultados".
Quando estava tudo feito e dito, quando a vítima estava exausta, dorida e cozida, pouco mais houve para relatório. Há ainda a estória de como o jornalista português andava a contar às enfermeiras que as cicatrizes tinham sido feitos numa luta de bar contra três motoqueiros dos Hell Angels enquanto defendia a honra de uma menina, ou o facto de o paciente se ter decidido levantar para atender um telefone que não parava de tocar, apenas de calças, descalço e de tronco nu com fios ainda ligados ao peito e ao braço. Ou ainda como, às 11 da manhã, seis horas depois de chegar ao hospital, Tiago disse em voz alta: "Minhas senhoras, tem sido muito divertido, mas é hora de ir para casa." E como Mary, enfermeira irlandesa de cinquenta anos, lhe disse: "Keep your pants on, laddy. Just wait, will you?". Ao que ele respondeu, pescoço ainda sujo de sangue, cabelo despenteado e lábio inchado: "Mary, my love, my pants are everything I got right now". A estória continua sexta feira, quando a vítima voltar ao hospital para retirar os pontos. Até lá, T. R. S., jornalista português empregado de mesa num restaurante italiano, vai passar os dias sentado numa esplanada ao sol, cerveja na mão, a dizer para quem o quiser ouvir que não encontrou Deus no hospital; apenas uma moeda de vinte cinto cêntimos esquecida dentro de uma gaveta.
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