Marlene Dietrich
Estava no sítio mais improvável, o único lugar onde a poderia encontrar. Era tarde, as ruas estavam desertas, os carros raros, os sinais vermelhos sem importância. As únicas lojas abertas eram de conveniência, asiáticos que preparam ramos de flores, nuvens de água, como orvalho, as pétalas húmidas das rosas, os ramos compostos, Nova Iorque é das poucas cidades onde se pode ser romântico de madrugada. Passo por pessoas com as mãos bem enfiadas nos bolsos, ombros encolhidos, postura defensiva perante o frio e os desconhecidos com quem se cruzam. Algumas têm mecanismos de alienação, música que as isola e torna vazia a rua onde passam. Outras estão entregues à preocupação de pagar a renda, à ansiedade de telefonar à rapariga que acabaram de conhecer num bar, ao sonho de conseguirem o papel para o qual vão fazer a audição amanhã, extras num filme independente ou personagens secundárias numa peça encenada Off Off Broadway. Spring Street é como um filme negro alemão, esquinas, sombras, fumo, portões metálicos, estradas vazias. Ela tinha que aparecer, este é o primeiro acto e todos os actores importantes devem ser apresentados nos primeiros minutos, mulher fatal, cabelos loiros, pernas longas e reveladoras.
Consigo apenas ver-lhe parte da face mas a sua beleza obriga-me a parar. Estava ali, junto de sacos pretos enormes, garrafas vazias de cerveja, provas de existência de vida, um altar urbano. A minha veneração é apenas a continuação de décadas de fascínio. Sei que não sou o primeiro a descobrir o Anjo Azul e sinto-me menos sozinho. Olhar para ela é como ouvir música dos Coldplay, manifestações do absoluto que nos fazem sorrir apenas porque sim. Já não tenho um gira-discos há mais de dez anos, mas naquele minuto, três da manhã horário de Nova Iorque, peguei no disco de vinil como se tivesse descoberto um tesouro. ‘Lili Marlene (sung in German) – Marlene Dietrich’.
De perto, perante a sinceridade dos pormenores, reparo no cigarro aceso, na sobrancelha arqueada, nos pés descalços, na mão estendida num palco de madeira. A fotografia é de Milton Greene, a edição da Columbia Records, do tempo em que se contava uma estória na contracapa - durante a Segunda Guerra Mundial, o Office Of Strategic Services pediu a Marlene Dietrich para gravar músicas americanas cantadas em alemão, milhares de soldados nazis dançaram ao som de ‘Taking a Chance on Love’. Os avisos ‘Tenha cuidado com os seus discos. Verifique a agulha do seu gramofone regularmente. Uma agulha usada fará uma reprodução pobre do seu disco. Uma agulha lascada irá causar-lhe danos permanentes’ parecem-me mais um aviso à condição humana do que preocupações ligadas ao vinil.
Alguém me perguntava qual a razão para viver em Nova Iorque. Esta é uma delas. Os pequenos brindes, as surpresas que nos aguardam. Esta cidade é como uma mãe indiferente com rasgos de bondade, uma pessoa com charme que nunca faz coisas charmosas e que me cansa, que me deprime e me encanta.
Estava no sítio mais improvável, o único lugar onde a poderia encontrar. Era tarde, as ruas estavam desertas, os carros raros, os sinais vermelhos sem importância. As únicas lojas abertas eram de conveniência, asiáticos que preparam ramos de flores, nuvens de água, como orvalho, as pétalas húmidas das rosas, os ramos compostos, Nova Iorque é das poucas cidades onde se pode ser romântico de madrugada. Passo por pessoas com as mãos bem enfiadas nos bolsos, ombros encolhidos, postura defensiva perante o frio e os desconhecidos com quem se cruzam. Algumas têm mecanismos de alienação, música que as isola e torna vazia a rua onde passam. Outras estão entregues à preocupação de pagar a renda, à ansiedade de telefonar à rapariga que acabaram de conhecer num bar, ao sonho de conseguirem o papel para o qual vão fazer a audição amanhã, extras num filme independente ou personagens secundárias numa peça encenada Off Off Broadway. Spring Street é como um filme negro alemão, esquinas, sombras, fumo, portões metálicos, estradas vazias. Ela tinha que aparecer, este é o primeiro acto e todos os actores importantes devem ser apresentados nos primeiros minutos, mulher fatal, cabelos loiros, pernas longas e reveladoras.
Consigo apenas ver-lhe parte da face mas a sua beleza obriga-me a parar. Estava ali, junto de sacos pretos enormes, garrafas vazias de cerveja, provas de existência de vida, um altar urbano. A minha veneração é apenas a continuação de décadas de fascínio. Sei que não sou o primeiro a descobrir o Anjo Azul e sinto-me menos sozinho. Olhar para ela é como ouvir música dos Coldplay, manifestações do absoluto que nos fazem sorrir apenas porque sim. Já não tenho um gira-discos há mais de dez anos, mas naquele minuto, três da manhã horário de Nova Iorque, peguei no disco de vinil como se tivesse descoberto um tesouro. ‘Lili Marlene (sung in German) – Marlene Dietrich’.
De perto, perante a sinceridade dos pormenores, reparo no cigarro aceso, na sobrancelha arqueada, nos pés descalços, na mão estendida num palco de madeira. A fotografia é de Milton Greene, a edição da Columbia Records, do tempo em que se contava uma estória na contracapa - durante a Segunda Guerra Mundial, o Office Of Strategic Services pediu a Marlene Dietrich para gravar músicas americanas cantadas em alemão, milhares de soldados nazis dançaram ao som de ‘Taking a Chance on Love’. Os avisos ‘Tenha cuidado com os seus discos. Verifique a agulha do seu gramofone regularmente. Uma agulha usada fará uma reprodução pobre do seu disco. Uma agulha lascada irá causar-lhe danos permanentes’ parecem-me mais um aviso à condição humana do que preocupações ligadas ao vinil.
Alguém me perguntava qual a razão para viver em Nova Iorque. Esta é uma delas. Os pequenos brindes, as surpresas que nos aguardam. Esta cidade é como uma mãe indiferente com rasgos de bondade, uma pessoa com charme que nunca faz coisas charmosas e que me cansa, que me deprime e me encanta.
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