Parou quando adormeci. Ou quando pensei que adormeci. Na verdade tinha morrido. Queria abrir os olhos mas eles não se tinham fechado, apenas deixado de funcionar. Não tenho medo da escuridão. Sou do tempo em que a electricidade não iluminava até à exaustão todo e qualquer canto. Sempre vi as sombras como um lugar onde podemos descansar um pouco, recuperar o fôlego, chorar e desabafar sem sermos vistos. Não acredito em monstros nem que o mal se esconde no negrume. Não, não sinto medo. Tenho pena, claro. De não voltar a ver os meus filhos. De faltar à promessa que fiz à Rosa. De não ter mais tempo para tentar perceber os netos da cidade, sempre demasiado ocupados com coisas que não entendo para os conhecer como gostaria. Mas não posso fazer nada. A morte é inesperada mesmo quando é esperada. É superior, exigente e nunca muda de ideias. Tenho alguns últimos desejos, queria beber mais um copo de vinho tinto, voltar a sentir o aroma sufocante da terra húmida e correr pela última vez. As saudades que tenho de correr! Acho que merecia um último minuto de lucidez, com dentes e sem agulhas, tubos e roupas estranhas que cobrem aquilo que já foi o meu corpo, para abraçar a minha mulher e segredar-lhe confissões, o orgulho e sorte que foi ter vivido ao seu lado. O quanto a amo. Não me lembro de alguma vez o ter dito, entendem? Era desnecessário por ser óbvio. Seria como afirmar que tenho dois olhos ou que está a chover. Mas agora era a forma perfeita de resumir mais de sessenta anos de vida numa só palavra. Amor - humilde, segredado, sem cartas, palavras, manifestações, emoções. Amor que se alimenta a si próprio, que existe porque todos precisamos de ar para respirar e também nunca fizemos nada por isso, que não tentei entender, que não importava complicar. Exijo uma oportunidade para rever tudo o que fiz e criei. Mas não está cá ninguém e a vida não me passa à frente dos olhos. A morte não tem livro de reclamações e viaja só, mas sinto-me capaz de lhe fazer frente. Não a quero contrariar, apenas dizer-lhe que se devia portar melhor. E então percebi. Voltei a ser forte.
quarta-feira, outubro 15, 2003
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