quinta-feira, novembro 17, 2005

(Auto-terroristas - continua - está quase, quase, são só mais cinco minutos)

Programa da manhã, sorrisos em directo, mensagens em rodapé de irmãs que procuram progenitores, cães que desapareceram em caminhadas de rotina, amor que se transformou em nada num truque de magia. Terceiro episódio. Um inspector da Guarda Nacional Repúblicana, sentado numa cadeira encostada a uma mesa de esplanada de interior que pertence à falsa calçada portuguesa, confessa a perplexidade da polícia perante os auto-terroristas.

Existem milhares de maneiras de alguém se matar

Todos são suspeitos

A única forma de os reconhecer é através dos olhos. São vazios, como se a pessoa já não estivesse lá

Defendo a pena de morte para estes indivíduos

Crianças que cantam, idosos com vinte e três netos e sem electricidade em casa, dezenas de figurantes

quão inútil é a tua vida se tens como emprego estar sentado na segunda fila a contar de trás?

Actores de revista contam anedotas gastas e limpas de vernáculo, fatos verdes sem gravata, a falsa cumplicidade dos que se conhecem através de capas de revista. Uma pausa, a promessa de um segmento de rua

se tiveres uma casa vais ser feliz, se guiares um carro vais ser sexualmente activo, se apoiares a selecção nacional de futebol vais sentir que pertences

Luzes, um apresentador de casaco escuro e camisa aos quadrados que apresenta Miguel Ruas, ao vivo nas ruas de Lisboa, microfone na mão, cabelo penteado com dedos e gel, bronzeado falso que cheira a creme de solário. Terreiro do Paço, pessoas que acenam para a câmara, dia de sol e frio, algumas nem param, como se apregoassem a não-existência. Uma voz que se eleva acima da imagem.

Bom dia, Miguel Ruas. Qual é a disposição dos Lisboetas neste início gelado de dia? As pessoas estão receosas de novos ataques?

A ausência de resposta imediata. Passos seguros e rasos em direcção a uma coluna. A objectiva fiel que o segue enquanto lhe filma as costas. Um homem de casaco de cabedal barato e camisola castanha espera questões, este é um grande dia, espero que a esposa esteja em casa a ver, filhos que apontam para o ecrã e acreditam que o pai é Deus.

É isso que vamos descobrir agora. Neste momento

Uma cabeçada violenta na esquina de pedra que lhe corta a testa como uma faca afiada. A imagem treme e o entrevistado não reage. O sangue escorre e turva a visão de Miguel, gotas pretas penduradas nas pestanas que secam ao frio.

Aposto que nunca viram nada assim. Mesmo que passem horas em frente à televisão

Novo golpe, alguém que o tenta agarrar, gritos de pessoas que correm perante a ausência de perigo. Um movimento de cintura, figuras no chão, o corpo que se abraça sem dor à eternidade do edifício. Um polícia de revólver na mão avisa

Pára senão atiro

sem perceber o absurdo do ultimato. Um último sorriso, dentes manchados, face deformada pela violência. Matéria explode no ombro direito, um golpe seco, o corpo sacode indiferente, novo disparo, queda e imobilidade. Grande plano. Ecrã negro.
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