Capítulo IV – Carlos e Diogo
Transcrição do interrogatório a Diogo Andrade, vinte e sete anos, Bilhete de Identidade número 138490432. Funcionário da Brisa, portageiro no quilómetro 25 da autoestrada Lisboa/Caiscais. Investigação conduzida pelo Detective Carlos Rodrigues, distintivo número 197648 da Polícia Judiciária. Segunda-feira, dia 20 de Outubro 2003. 17h21.
Carlos Rodrigues: Acaba aqui, Diogo. Tudo acaba aqui. Tenta ser objectivo mas não escondas pormenores. Nunca se sabe se algum detalhe pode ajudar a investigação. (silêncio). Não te importas que te trate por tu, pois não? Somos todos amigos aqui.
Diogo Andrade: Não, não me importo.
C.R.: Quero que saibas também o quanto lamento tudo o que aconteceu. A sova no hotel, o (silêncio) que aconteceu na cela.
D.A.: (silêncio) Deixa-me deixar uma coisa bem clara, antes de começarmos. O que se passou não se passou, entendes? Não vou dizer uma palavra sobre esse assunto.
C.R.: Compreendo e respeito. Fala-me daquele final de tarde no hotel.
D.A.: Não, para tudo fazer sentido, temos que ir mais longe. Quero que percebas bem o que se passou. Quero que a minha tragédia valha algo. Que ao menos algo mude com o meu sacrifício. O que vou dizer, aquilo que ficar gravado nesta porcaria aqui, tem consequências políticas, percebes?
C.R.: Continua.
D.A.: Tudo começou com o meu pai. O meu pai era portageiro. Desde miúdo que ele me fascinava com relatos de dias de trabalho, o convívio com as pessoas, as relações humanas, o contacto com celebridades. Eusébio, Amália, Tony de Matos, Júlio Isidro, o meu pai conhecia-os todos, clientes habituais na autoestrada número 1. Não me esqueço das diferentes estórias, de como o Eusébio se enganava sempre nos trocos ou...
C.R.: Diogo, não me entendas mal. Tudo isso é fascinante. Mas achas mesmo que é relevante para o caso?
D.A.: Estou a chegar lá. Como imaginas, cresci a acreditar que eu ia ser o melhor portageiro que este país alguma vez conheceu. (silêncio). Até ao dia em que inventaram a maldita via verde. Acho que ninguém imagina o isolamento a que nós, portageiros, fomos sujeitos. A quantidade de depressões na profissão, as tentativas de suicídio. É como se, oficialmente, nos tivéssemos tornado obsoletos. Já ninguém pára numa portagem, os carros passam na indiferença dos duzentos quilómetros por hora. Como se fossemos fantasmas. (silêncio). Desculpa, tenho que parar um minuto. (silêncio).
C.R.: (silêncio) Toma um lenço.
D.A.: Obrigado. (silêncio). O desânimo instalou-se no meio do pessoal. Uns refugiaram-se no álcool, outros nas linhas eróticas, alguns ficaram viciados no Big Brother. Eu (silêncio), eu comecei a experimentar com drogas. Li umas coisas sobre cocaína e fiquei com curiosidade. Infelizmente, mais uma das grandes injustiças deste mundo, os portageiros não ganham bem. Só tinha dinheiro para cheirar Tang Laranja.
C.R.: Oh, o horror.
D.A.: Em pouco tempo, as minhas narinas começaram a ficar feridas. Começei a sofrer hemorragias. (silêncio).
C.R. Continua. Por favor.
D.A.: Quando conheci a Sara, o primeiro carro que parou na minha cabine durante todo o dia, tinha feito já dois sacos de Tang Limão.
C.R.: Já estavas a dar no Limão?
D.A.: Sim, que é muito mais forte. Nem pensei duas vezes quando ela me disse aquilo...
C.R.: Disse o quê?
D.A.: (silêncio) Que chupava como uma virgem ninfomaníaca.
C.R.: (silêncio)
D.A.: (silêncio)
C.R.: Sabes o que aconteceu no hotel? É altura...
D.A.: Sim, eu sei de onde veio todo aquele sangue. Tens razão, é altura de dizer a verdade. Comecei a sangrar do nariz quando a estava a comer. Não conseguia parar. Quando ela reparou, entrou em pânico e fugiu. Eu fui à casa de banho limpar-me. Reparei num tipo através do espelho mas, antes que pudesse dizer seja o que for, ele cegou-me com mace. (silêncio) Não me lembro de mais nada. (silêncio) E acabei aqui. (silêncio). Analmente abusado ao Domingo por um tipo que se intitula ‘João Enraba o Cão’. (silêncio). E perdi o jogo de Portugal. (silêncio). Oh, a humanidade.
C.R.: Não sei o que dizer Diogo. Talvez tenhas razão. Espero que esta estória, a tragédia de um portageiro existencialista, de uma virgem ninfomaníaca, de um segurança privado passivo-agressivo, de um polícia de carreira que gostaria de ter sido dançarino, talvez tudo isto sirva para relembrar às pessoas que os portageiros também são pessoas. Que não custa perder cinco minutos das nossas vidas para termos uma palavra amiga com quem passa o dia numa caixa no meio da estrada. Talvez o teu sacrifício não tenha sido em vão. Quem sabe se não serás visto como um herói no futuro. A padeira de Aljubarrota dos portageiros. Quanto ao jogo, não te preocupes. Tenho um amigo com quem preciso de fazer as pazes que gravou o jogo. Acho que nós os três nos podemos dar muito bem.
(silêncio) (fim da transcrição)
Amanhã é o dia mais importante da sua vida! O final desta estória Chocante! Escandalosa! Perversa! Não se pode dar ao luxo de perder a conclusão ou ficará na dúvida o resto da sua vida!!!
Transcrição do interrogatório a Diogo Andrade, vinte e sete anos, Bilhete de Identidade número 138490432. Funcionário da Brisa, portageiro no quilómetro 25 da autoestrada Lisboa/Caiscais. Investigação conduzida pelo Detective Carlos Rodrigues, distintivo número 197648 da Polícia Judiciária. Segunda-feira, dia 20 de Outubro 2003. 17h21.
Carlos Rodrigues: Acaba aqui, Diogo. Tudo acaba aqui. Tenta ser objectivo mas não escondas pormenores. Nunca se sabe se algum detalhe pode ajudar a investigação. (silêncio). Não te importas que te trate por tu, pois não? Somos todos amigos aqui.
Diogo Andrade: Não, não me importo.
C.R.: Quero que saibas também o quanto lamento tudo o que aconteceu. A sova no hotel, o (silêncio) que aconteceu na cela.
D.A.: (silêncio) Deixa-me deixar uma coisa bem clara, antes de começarmos. O que se passou não se passou, entendes? Não vou dizer uma palavra sobre esse assunto.
C.R.: Compreendo e respeito. Fala-me daquele final de tarde no hotel.
D.A.: Não, para tudo fazer sentido, temos que ir mais longe. Quero que percebas bem o que se passou. Quero que a minha tragédia valha algo. Que ao menos algo mude com o meu sacrifício. O que vou dizer, aquilo que ficar gravado nesta porcaria aqui, tem consequências políticas, percebes?
C.R.: Continua.
D.A.: Tudo começou com o meu pai. O meu pai era portageiro. Desde miúdo que ele me fascinava com relatos de dias de trabalho, o convívio com as pessoas, as relações humanas, o contacto com celebridades. Eusébio, Amália, Tony de Matos, Júlio Isidro, o meu pai conhecia-os todos, clientes habituais na autoestrada número 1. Não me esqueço das diferentes estórias, de como o Eusébio se enganava sempre nos trocos ou...
C.R.: Diogo, não me entendas mal. Tudo isso é fascinante. Mas achas mesmo que é relevante para o caso?
D.A.: Estou a chegar lá. Como imaginas, cresci a acreditar que eu ia ser o melhor portageiro que este país alguma vez conheceu. (silêncio). Até ao dia em que inventaram a maldita via verde. Acho que ninguém imagina o isolamento a que nós, portageiros, fomos sujeitos. A quantidade de depressões na profissão, as tentativas de suicídio. É como se, oficialmente, nos tivéssemos tornado obsoletos. Já ninguém pára numa portagem, os carros passam na indiferença dos duzentos quilómetros por hora. Como se fossemos fantasmas. (silêncio). Desculpa, tenho que parar um minuto. (silêncio).
C.R.: (silêncio) Toma um lenço.
D.A.: Obrigado. (silêncio). O desânimo instalou-se no meio do pessoal. Uns refugiaram-se no álcool, outros nas linhas eróticas, alguns ficaram viciados no Big Brother. Eu (silêncio), eu comecei a experimentar com drogas. Li umas coisas sobre cocaína e fiquei com curiosidade. Infelizmente, mais uma das grandes injustiças deste mundo, os portageiros não ganham bem. Só tinha dinheiro para cheirar Tang Laranja.
C.R.: Oh, o horror.
D.A.: Em pouco tempo, as minhas narinas começaram a ficar feridas. Começei a sofrer hemorragias. (silêncio).
C.R. Continua. Por favor.
D.A.: Quando conheci a Sara, o primeiro carro que parou na minha cabine durante todo o dia, tinha feito já dois sacos de Tang Limão.
C.R.: Já estavas a dar no Limão?
D.A.: Sim, que é muito mais forte. Nem pensei duas vezes quando ela me disse aquilo...
C.R.: Disse o quê?
D.A.: (silêncio) Que chupava como uma virgem ninfomaníaca.
C.R.: (silêncio)
D.A.: (silêncio)
C.R.: Sabes o que aconteceu no hotel? É altura...
D.A.: Sim, eu sei de onde veio todo aquele sangue. Tens razão, é altura de dizer a verdade. Comecei a sangrar do nariz quando a estava a comer. Não conseguia parar. Quando ela reparou, entrou em pânico e fugiu. Eu fui à casa de banho limpar-me. Reparei num tipo através do espelho mas, antes que pudesse dizer seja o que for, ele cegou-me com mace. (silêncio) Não me lembro de mais nada. (silêncio) E acabei aqui. (silêncio). Analmente abusado ao Domingo por um tipo que se intitula ‘João Enraba o Cão’. (silêncio). E perdi o jogo de Portugal. (silêncio). Oh, a humanidade.
C.R.: Não sei o que dizer Diogo. Talvez tenhas razão. Espero que esta estória, a tragédia de um portageiro existencialista, de uma virgem ninfomaníaca, de um segurança privado passivo-agressivo, de um polícia de carreira que gostaria de ter sido dançarino, talvez tudo isto sirva para relembrar às pessoas que os portageiros também são pessoas. Que não custa perder cinco minutos das nossas vidas para termos uma palavra amiga com quem passa o dia numa caixa no meio da estrada. Talvez o teu sacrifício não tenha sido em vão. Quem sabe se não serás visto como um herói no futuro. A padeira de Aljubarrota dos portageiros. Quanto ao jogo, não te preocupes. Tenho um amigo com quem preciso de fazer as pazes que gravou o jogo. Acho que nós os três nos podemos dar muito bem.
(silêncio) (fim da transcrição)
Amanhã é o dia mais importante da sua vida! O final desta estória Chocante! Escandalosa! Perversa! Não se pode dar ao luxo de perder a conclusão ou ficará na dúvida o resto da sua vida!!!
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