sábado, novembro 26, 2005

O Regresso

“Não somos o lugar onde nascemos. Nem a língua em que falamos. Não somos a nossa História, a pequena aldeia dos nossos avós, as pessoas com quem crescemos. Nem sequer as coisas que dizemos. Como é que eu sei isto? Chega aqui, mais perto, quero-te contar uma coisa. Quando estás num avião, a dez mil metros de altitude, em direcção a Nova Iorque, o teu corpo começa a mudar. Os sentidos ficam mais apurados. As mãos tremem. É algo que nunca irás compreender, mas quando te encostas naquela cadeira apertada da classe turística, com uma senhora de idade que adormeceu repousada no teu ombro, estás em mutação. Mesmo que estejas concentrado no filme de bordo, convenientemente editado para preservar os valores familiares, ou a tentar digerir comida plastificada enquanto lutas contra a turbulência, sabe que nada será igual. Mas não te estás a transformar. É apenas o regresso ao que sempre foste. Manhattan visto de cima é uma explosão de luzes e energia. Abandonas o avião e percorres os corredores, e apesar de ainda nada ser diferente, os aeroportos são todos iguais, as tuas pernas ganham agilidade. Percorres cem metros e cruzas-te com sete nacionalidades diferentes. Passaporte na mão, atrás da linha amarela, à espera da tua vez, o formulário branco preenchido e alguém que diz ‘what is the purpose of your visit, Sir?’. Sorris porque esta é a primeira vez que alguém te chama Senhor sem querer alguma coisa em troca. Estás quase lá. É ali, atrás dos motoristas que seguram nomes escritos a preto em placares brancos. Passando pelas pessoas que se beijam porque antes do reencontro tudo é perfeito. Está a nevar. Respiras fundo. A tua expiração manifesta-se e participa num processo de fusão com os flocos brancos que caem. Como se fossem velhos amigos. Sabes que estás num sítio estranho. Não conheces as estradas, não tens ideia de onde comprar o jornal ou beber um copo, não és sócio de nenhum videoclube, e nenhum amigo te vai telefonar para saber como é que tens andado. Acabou o conforto do familiar e nunca foste apresentado à Cidade. Mas sabes que estás em Casa.”

Foi nesse dia. É este o exacto momento em que decidi. A opinião de um agente de viagens vestido num fato cinza e meias brancas mudou a minha vida.

Duas semanas antes, tinha olhado para o lado e visto nada. Apenas uma casa vazia enfeitada por fotografias desactualizadas. Não tinha emprego, a minha família eram estranhos, os amigos evitavam-me. Ninguém gosta de tocar na tragédia, mesmo que seja apenas um aperto de mão. A angústia é algo que se cheira e afasta as pessoas. Fui ao banco e levantei todo o dinheiro que tinha, alguns milhares de Euros do seguro. A ideia inicial era gastar tudo em álcool e drogas, inspirar suficiente cocaína até ter a certeza que nunca mais voltaria a dormir, beber a quantidade certa até destruir o número suficiente de células cerebrais. Mas gostei das fotografias da montra. Dos prédios altos, dos neons e das pessoas que não olham à volta quando caminham pelas ruas. Pensei que era o sítio ideal para apregoar a não existência. Ou para me tornar numa pessoa completamente diferente. Só é possível começar de novo quando não há ligações com o passado. Os recém nascidos não podem ter memória.

A Primeira Vida foi Nova Iorque. Rapei o cabelo, depois de sete anos de pontas espigadas e amaciadores. Tornei-me uma pessoa bem humorada, que diz ‘good mourning’ aos vizinhos quando passa por eles nas escadas, treinando sorrisos à frente do espelho, como os actores, até que o movimento de lábios se torne convincente. Trabalhei numa Deli mexicana onde servíamos burritos a qualquer hora. Conheci pessoas que enviavam para casa todos os dólares que ganhavam, dias gastos em cozinhas escuras, a lavar pratos com água a escaldar e suor, sem dormir, sem comer, sem sorrir, mas com a garantia de que a família está melhor, que cada dia é um tijolo da nova casa. Andava pelas ruas, mas as pessoas não me ignoravam, sorriam, acolhiam-me, perguntavam-me de onde era, o que queria ser, quais os meus talentos e ambições. Fui convidado para sair, pegaram-me na mão, levaram-me para casas em Queens, ouvi histórias de infância, voltei a descobrir corpos nus. Comi bruch no meatpacking district rodeado de figuras tornadas fascinantes por esta cidade. Demorou dois meses até me sentir em casa. Foi nesse dia que abandonei Nova Iorque.

Em Praga, deixei crescer a barba, tive a minha primeira relação homossexual e pintei quadros que vendia na Ponte Karlof.

Em Paris, pintei o cabelo de loiro, comprei botas da tropa que sujava de sangue todas as noites, assaltei pessoas em semáforos. É a cidade onde disparei pela primeira vez uma arma, massacrei o meu corpo com cicatrizes e tatuagens, perdi o terceiro dedo do pé direito.

Meditei no Tibete, tornei-me vegetariano, trabalhei o campo.

No Brasil, surfei coxo e fumei maconha, chopo ao final da tarde, bronzeado constante, viagens de mota e entrega de envelopes para um serviço expresso.

Cinco anos depois, volto a Lisboa. A cidade parece ter mais luz. Alugo um quarto numa pensão mas, um mês depois, sou expulso por não pagar as contas. Percorro as ruas, cruzo-me com amigos que não me reconhecem. Sou invisível. Não existem sinais de mim. Testei novas vidas, mas nenhuma encaixou. Peço dinheiro nas ruas com um copo de papel vazio da Coca-cola. Digo que sou um veterano da Guerra do Iraque. Embebedo-me mas nunca digo uma palavra. As cordas vocais estão desactivadas. Adormeço em esquinas de prédios.

Tudo isto para nada. Porque hoje estamos a 23. Seis anos exactos depois do acidente. O passado faz parte do ADN, está gravado nas células do meu corpo. Apesar nos meus esforços, desta viagem de auto-destruição, continuarei a chorar antes de adormecer.
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