terça-feira, outubro 28, 2003

O homem que não podia amar

Enquanto Miguel estava sentado naquela mistura entre cama e maca, braços esticados e mãos que apertam o colchão como quem tem medo de cair, olhos presos ao quadro de uma vista para o mar, paredes brancas e esterilizadas, tudo em que pensava era no que tinha para fazer amanhã. Este era um exame de rotina, tensão arterial um pouco alta, cuidados a ter com o açúcar e o sal, deixar de fumar. O Doutor Ruas entrou na sala e tudo parecia apenas mais um take de uma cena repetida até à exaustão onde somente os pormenores mudavam. Hoje, este ano, o médico usava óculos, coisa que nunca tinha sido vista. Miguel percebeu mais tarde que o acessório daria dramatismo à cena e soube, pela primeira vez, que as pequenas coisas escondem significados espantosos.

‘Tenho boas notícias e más notícias. Continuas em óptima forma física. Vais viver até aos cem anos. O problema é que descobrimos um desequilíbrio químico no teu cérebro. Existe uma anfetamina natural que os americanos baptizaram de PEA - ou phenylethylamine se quisermos ser mais específicos – que é responsável pela produção da dopomina neuro-química que, por sua vez, solta oxytocina. Estas substâncias, incluindo a norepinephrine (que estimula a criação de adrenalina), são transportadas para todo o corpo. As mãos começam a suar, o coração a bater mais depressa, os níveis de energia disparam. Ora bem, segundo estes resultados, nada do que acabei de referir se passa na tua cabeça. E o que isso implica, Miguel, é que nunca vais conseguir amar.’

Era uma criança de apenas três meses mas a licença de parto já tinha expirado. Rosa deixou Miguel em casa da avó, mas jurava horas antes perante uma amiga que nunca iria conseguir separar-se do seu bebé. O que a fez libertar aquela mão de porcelana de dedos frágeis foi o sossego, a ausência de gritos ou lágrimas. Durante toda a sua infância, Miguel sempre foi considerado uma criança calma, bem comportada. Nunca chorava se os pais não lhe davam doces, não se fechava no quarto quando a mãe chegava tarde a casa, passava os dias sentado no sofá da sala a ler enciclopédias ou livros de filosofia que roubava da biblioteca pública, onde Rosa trabalhava. Mais tarde, já adolescente, levava raparigas no intervalo do almoço para a casa vazia de progenitores, relações temporárias seladas com promessas eternas, ‘desejo-te’ sempre substituído por ‘adoro-te’, a tentativa dos Homens em justificar a vontade sexual com séculos de sentimentos. Quando Rosa falava do Miguel às amigas entre corredores de livros, rodeadas pelas palavras de Kafka ou Eça de Queirós, no meio de sorrisos sonoros, dizia com a sabedoria omnipresente das mães que o seu filho tinha muito amor para dar, mas não fazia ideia de onde o colocar. Depois, pelos vinte e um anos, uma gravidez inesperada, o final do sonho de uma licenciatura, início da carreira como vendedor de carros, casamento, filha, empregado do ano, todos falavam do jovem que vendia BMWs enquanto citava a analogia da Caverna de Platão ou a manifestação do Absoluto e do Belo de Hegel. Casa, família, impostos em dia, seguro médico, a filha em colégios privados, escondida do mundo real como quem brinca ao faz-de-conta. Miguel pensou durante mais de trinta anos que tinha tudo aquilo que sempre desejou. Até o Doutor Ruas entrar naquela sala, óculos na face, olhar baixo na direcção dos papéis que segurava na mão. Engraçado como as más notícias assumem sempre a forma de números, dados, estatística.

Se, quando estivermos quase a chegar aos cinquenta anos, alguém nos disser que nunca amámos nesta vida, a única coisa que podemos fazer é parar e prestar atenção. Se tiverem provas, bem, então estamos mesmo em problemas. Miguel refugiou-se no café onde lia o jornal todos os dias e vasculhou a sua memória. Tudo o que precisava era de um único momento de amor, algo que provasse que toda aquela teoria estava errada. Se fizemos um esforço, não precisamos de morrer para a vida nos passar diante dos olhos. Três horas depois, desistiu. Soube então que era verdade, que pensou que tinha amado porque é o que todos fazemos, porque estamos convencidos que nos torna melhores pessoas, que dá sentido a uma vida anárquica e sem direcção, onde o impossível é provável. Miguel viveu a sua vida como um mágico que cria a ilusão de sentimentos mas agora descobriu algo que sempre foi parte dele, desde aquele dia em casa da avó, três meses de idade e já desligado de quem lhe ofereceu sangue, pulso, batimentos cardíacos, movimentos da pálpebra. Num momento de honestidade inédita, limpo de tudo o que não fosse a verdade, sentiu o quanto gostava da família e chorou quando percebeu que conseguiria viver sem ela, que nunca seriam parte dele, que a solidão seria sempre algo que admirava.

Quando Miguel atingiu os cinquenta anos e cerrou os olhos perante a multiplicidade das chamas, sentiu-se confortado pela falsa escuridão e decidiu quebrar as regras pedindo mais do que um único desejo. Sossego, passeios na praia, assistir a um bom jogo de futebol ao fim-de-semana e ter tesão durante, pelo menos, mais dez anos. Mas fez mais do que isso. Contra os desejos da mulher, aderiu à prática de páraquedismo, todos os meses saltava sobre uma cidade diferente sorrindo como um adolescente, sensações que nunca lhe tinham passado pelo corpo, euforia, aquele vazio no estômago quando enfrentava a porta do avião e os fortes ventos que o abraçavam. Tornou-se também fanático por chocolate, por vezes comia duas barras por dia, mais uma vez contra os conselhos da família, um homem daquela idade, com o perigo de diabetes, não era saudável, pois não, mas o Miguel não se importava com nada disso, sentia que vivia pela primeira vez e queria tudo aquilo que tinha perdido. Quando faleceu suavemente, a diferença que uma noite faz, deitou-se vivo e acordou morto, todos o recordaram pela sua excentricidade, pela alegria de viver, pelo entusiasmo, pelo carinho. A filha, agora uma mulher, levantou-se perante todos e, numa mistura de lágrimas e orgulho, relembrou as palavras de Rosa; ‘O meu pai teve muito amor para dar, mesmo se não fizesse ideia de onde o colocar.’ O Doutor Ruas, na primeira fila e desde aquele dia no consultório o melhor amigo do falecido, não conseguiu evitar um sorriso porque a vida de Miguel tinha sido na verdade o oposto. Recordaria sempre o homem que tinha inventado amor a partir do nada, como um ilusionista que descobre um ás de copas num baralho de duques.
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