quarta-feira, novembro 12, 2003

Os mudos

Por vezes, não é preciso uma bola de cristal para adivinhar o futuro. João olha para o desespero da luz vermelha e sabe bem qual é a mensagem. Carla vai chegar tarde mais uma vez. Reuniões de redacção, escolhas de capas, jantares com fontes, motivos que se repetem sempre com o mesmo resultado. Coloca a velha pasta de couro em cima da mesa. Na cozinha, também não precisa de abrir o frigorífico para decidir que a comida virá mais uma vez de fora, um estranho numa motocicleta carregando um saco branco como se fosse uma bandeja tocará na campainha, entregando-lhe uma caixa de cartão húmida e quente, como se respirasse. Haverá uma breve troca de sorrisos artificiais e quando a porta se fechar, João tentará convencer-se que tudo isto é normal, duas pessoas para duas carreiras, um casamento moderno. Mas adormeceu sozinho acompanhado pelas palavras que julgava ideais para a discussão do dia seguinte. Faria tal como explicava aos seus alunos, cada expressão e argumento deveria ser calculada, um plano de ataque minucioso e implacável.

Quando Carla encaixou a chave na fechadura, descobriu que o silêncio não é mais do que uma armadilha, o terreno onde qualquer movimento se transforma em denúncia. Não queria acordar João, era tarde, prefira guardar o confronto para o dia seguinte, estava cansada, olhos feridos pelas luzes dos monitores, letras, fotografias. Tudo o que desejava era cear e dormir. Detestou encontrar apenas os restos de pão, os guardanapos sujos de queijo e tomate, o fogão limpo por falta de uso. O egoísmo de João sufocava-a e sentia as palavras a atravessarem-lhe a garganta, cheias de vida e fúria. Sentou-se à mesa e escreveu num papel tudo aquilo que a incomodava, como se fosse um texto jornalístico com factos alinhados e apenas uma conclusão possível. Que João não pensasse por um momento que este casamento iria funcionar sem esforço ou que a promissora carreira de editora seria vista como um defeito.

A água corria, fios que se confundem com lágrimas alastravam-se pelo corpo de João, o champô tornava-lhe o cabelo branco e envelheciam-lhe a face, um cansaço dormido, a antecipação de um embate gasto e inútil. Carla torrava pão, os ovos mexidos esperavam no prato, refeição para um, ele que ficasse com os restos frios da comida de plástico da noite anterior. Fumava um cigarro, o primeiro de muitos nesse dia. Quando João entrou, o silêncio em que se olharam foi o derradeiro insulto.
‘Carla’
‘João’
‘Dies wird nicht arbeiten’

Existem coisas inexplicáveis, que nos ultrapassam e confundem, falhas na realidade e no racional. Por muito tempo que Carla estivesse fechada sozinha no quarto, por mais que roesse as unhas e acendesse tabaco, era esta a única conclusão a que conseguia chegar. Sabia bem que João nunca tinha aprendido uma palavra de alemão por aversão aos filósofos teutónicos e viu-lhe nos olhos a aflição, o pânico de querer dizer uma coisa e ouvir outra. Ainda conseguia ouvir o lamento e a incompreensão do próprio choro. ‘Was ist Ereignis? Dies ist unmöglich!’ Queria abrir a porta e abraçá-lo, passar-lhe os dedos pelo cabelo, deixar que as lágrimas lhe manchassem a camisola, mas a situação tinha atingido proporções bíblicas. A reacção instintiva de Carla às primeiras palavras em alemão de João foi exclamar ‘Non capisco. Che lei ha detto?’, nessa língua que desconhecia e que desprezava pois o pai fora assassinado pelas brigadas vermelhas há dezenas de anos atrás. Separados pela barreira da linguagem, isolaram-se na angústia daqueles que sabem que a vida mudou para sempre indiferente à própria vontade.

Não há traição na palavra escrita. A criação de uma empresa de traduções permitiu a Carla e João viverem uma vida de silêncio, os únicos contactos com o exterior estabelecidos através de correio electrónico e cartas, envelopes castanhos das editoras literárias entregues em mão por mensageiros proibidos de falar com os remetentes. Uma intocável harmonia invadiu a casa, o casal comunicava primeiro através de gestos e olhares, depois por simples intuição e sentido prático. A solidão do silêncio aproximou-os, tornou-os num elemento comum, o símbolo perfeito da união de dois elementos, o carinho e a ternura substituíam a expressão do amor por sílabas.

Poucos anos depois, João queimou a língua quando provava o café caseiro e deixou escapar um lamento: ‘Mas isto está a ferver’. A sua reacção foi olhar para ambos os lados para perceber que Carla se encontrava distante, no quarto. Fechou os dois punhos e, esticando os braços, empurrou-os com força contra a bancada da cozinha. A decisão que tomou foi quase visceral, sabia nesse momento que continuaria a não falar. Não queria estar curado de uma doença que o encantava, nunca diria a Carla que recuperara a sua habilidade oral do Português. O que João não sabia, porque ela nunca lhe tinha dito, é que este era um exercício de domínio que a sua esposa praticava há alguns meses, desde o dia em que ao ler o ‘Purgatório’ de Dante tinha exclamado para si própria ‘este tipo era um génio’. Carla acreditava agora no silêncio como uma dádiva. Por vezes, não é preciso uma bola de cristal para adivinhar o futuro. Viveram felizes para sempre.

quarta-feira, novembro 05, 2003

Sempre o mesmo dia

Já passa das cinco da tarde quando ela desperta. O sol entrou pela janela no quinto andar da residencial e encontrou na mesa-de-cabeceira no lado esquerdo um cinzeiro repleto de beatas. As calças de ganga azuis com cintura descaída e o top branco estão dobrados com eficiência e arrumados numa cadeira aos pés da cama. No chão do lado direito, encostado à parede, um necessaire cinzento fechado quebra a harmonia das paredes beges. Os lençóis da cama são brancos e baratos mas deixam perceber a silhueta e os contornos do corpo – o desenho das coxas, a forma dos seios, as pontas dos pés com as unhas pintadas de azul. Apenas a face não se esconde do mundo. Andreia tem longos e lisos cabelos negros e olhos com a cor do mar num dia de Verão, brilhantes como sal encadeado. Os dentes formam uma fila ordeira e alinhada, um branco puro que se confunde com os raios de luz que insistem em invadir o quarto. Afasta os lençóis e levanta-se vestida num pijama completo, calças e camisola. Dirige-se à casa de banho, que não é muito maior do que uma cabine telefónica, toma um duche prolongado e embrulha-se em toalhas sem cor. Olha ao espelho e maquilha-se. Primeiro aplica fond-de-teint na face, a base que lhe permite uns toques de pó-de-arroz e a colocação do blush, tudo com a minúcia de quem pinta um quadro. Depois, o rimmel escurece as pestanas enroladas pelo revirador, um lápis azul na pálpebra de baixo realça o tom dos olhos e a sombra escura faz com que tudo funcione. Os lábios são perfilados com um lápis claro e percorridos pelo batom vermelho com sabor a morango. Retira a toalha que lhe enxugava o cabelo e algumas madeixas caem na face. Afasta-as com cuidado, pega numa escova e penteia-se. Utiliza alguma laca enquanto o faz. Abusa do desodorizante antes de regressar ao quarto. No armário encontra um vestido vermelho com padrões pretos. Coloca-o, ainda no cabide, em cima da cama. Deixa cair a toalha e fica nua pela primeira vez. Antes de sair de casa, volta a encarar o seu reflexo e sorri. Andreia pode não ser licenciada e nunca ter lido um livro da primeira à última página, mas reconhece a ironia de perder tanto tempo apenas para se tornar naquilo que detesta ser. O necessaire está aberto à sua frente e verifica se não se esquece de nada. Tabaco, preservativos, lubrificante, uma lata de mace, tamtum verde para a garganta e uma fotografia onde um adulto e uma criança sorriem como se alguém tivesse acabado de tropeçar. Está tudo. Verifica as mensagens no telemóvel e, perante a insistência da campainha, abre a porta e desce as escadas.

Para entrar no Tesouro, Andreia tem que descer umas escadas estreitas. Apoia-se ao corrimão numa estranha e ínutil tentativa de colaborar com os seus sapatos altos pretos. Mesmo antes de chegar ao fundo, ouve música e diferentes conversas, sente por antecipação o fumo denso e os olhares de estranhos. Ao centro está uma loira alta a dançar semi-nua em redor de um poste cinzento de metal. Homens sentados em mesas à volta fumam charutos e bebem whisky de garrafas com rótulos onde estão escritos nomes em tinta preta. Joel Filipe. António Mercês. Sara Condensa. Comentam entre si, fazem gestos súbitos e abrem muito os olhos. Algumas cabeças agitam-se quando Andreia entra na sala, comentários, alguém que puxa do charuto, desejo insultuoso. Um rapaz com a camisa fora das calças e sapatos engraxados faz um sorriso cúmplice e aproxima-se. Ela dá um passo atrás quando sente o forte fedor a álcool, mas não evita algumas gotas de cuspo que lhe saem da boca e a atingem quando ele fala.
Há alguns dias que te ando a admirar à distância.
Ela coloca um sorriso ensaiado.
Ai sim? E não disse nada? É tímido? Não precisa ser. Acho você um gatinho!
Ele coloca o braço ao seu redor. A mão descai até ao fim das costas e quase entra pelo vestido vermelho, arrepiando-a, um desconforto confortável porque esta é uma sensação diária e a faz pensar que é apenas mais uma noite miserável.
Quanto é que levas?
Duzentos Euros. E você paga a pensão, né?
Pensão? Não, não, não. Eu quero levar-te para casa. Não me meto em pensões.
Ué, gatinho, qual é? A pensão é segura e bem espaçosa. Você vai gostar, garanto.
A cara do rapaz está cada vez mais próxima enquanto ela tenta disfarçar o nojo com a perfeição dos seus lábios.
Não! Pago-te 500 euros para vires para minha casa. E não te preocupes que eu não te trato mal. Mas tem que ser nas minhas condições.

A mão desce um pouco mais. Andreia concorda e diz que precisa de um minuto. Percorre o local com os olhos e encontra sentada a meio da sala, no lado esquerdo, uma ruiva de vestido curto acompanhada por um homem de idade de fato e gravata que lhe coloca a mão na coxa. Segreda-lhe ao ouvido
Cláudia, vou para casa daquele cara. Se acontecer alguma coisa, você já sabe, viu?
Quem, aquele lá? Você tem a certeza? Veja lá, que não me parece gente fina. Tem ar de safado.
O cara me oferece 500. Não posso perder a oportunidade. Você tem hora?
Duas da madrugada.
Legal. Até amanhã amiga.
Merda para você.

Entra apressada numa porta escondida. Encontra um telefone e marca o número com o nó dos dedos para não estragar as unhas. Espera durante uns segundos e alguém atende.
Oi, Marcelo. Aqui é a Andreia… Está tudo legal, estou trabalhando e fazendo uma grana fácil… Estou pensando em Agosto, no máximo… A Vera já está dormindo?… Me deixa falar com ela… Tô, filhinha! Como você está? Como correu a escola?... Eu ti amo também… A mamãe vai voltar logo, logo… Beijão… Ti amo… Até amanhã…
Desliga e apressa-se a voltar para o rapaz dos sapatos engraxados.
Me desculpa, gato. Vamos?
Vamos. Você amanhã tem um dia complicado?
Eu? Eu não. O mesmo dia. É sempre o mesmo dia.
Óptimo.

Sobem as escadas. Andreia agarra-se ao corrimão num exercício de equilíbrio. O rapaz segue atrás, sorrindo, a pensar se lhe apetece espancar mais uma puta de uma brasileira ou se é hoje que tem coragem para a sufocar com uma almofada.

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