segunda-feira, maio 31, 2004

Citação

Sempre considerei escrever a forma mais odiosa de emprego. Suspeito que seja um pouco como foder, que é apenas divertido para amadores. As velhas putas não sorriem muito.

Hunter S. Thompson

sexta-feira, maio 28, 2004

Diálogo

Vamos fazer alguma coisa?
Não posso. Tenho que estar às nove no parque.
Correr?
Beber café, sento-me num banco a observar pessoas.
De que é que estás à procura?
Nada. Pormenores, imperfeições, revelações de humanidade.
As tuas não são suficientes?
Perderam aquele impacto de algo novo. Gosto de pessoas com buracos nas camisas. Já não existem muitas. É pena.
És então um adepto de desleixo?
Não, apenas acho que perdemos demasiado tempo a arranjar aquilo que não tem importância.

(silêncio. ela olha para ele, ele para a janela, chuvisca e as luzes dos fárois de carros que passam desenham riscos brancos no ar)

(cantando em voz baixa) You have blue eyes, you have brown eyes, and I've never met no one quite like you before. No, I´ve never met no one quite like you before.

quarta-feira, maio 26, 2004

The Eternal Darkness of the Spotless Mind

Coisas que me irritam: Herman José, Fernando Mendes, condutores que buzinam em filas de trânsito ou semáforos, empregados de café antipáticos, querer ouvir uma música e o CD estar riscado, não me devolverem os telefonemas, acordar ressacado e não ter 7up em casa, as luzes que iluminam a Basílica da Estrela apagarem-se à meia noite. E críticos de cinema.

Existem dois tipos óbvios de críticos de cinema.

Temos a nova geração, representada pelos tipos que aparecem na Sic Radical, a contra-cultura mainstream, caras diferentes e opiniões sempre iguais. Vamos chamar-lhes os protagonistas, porque são as luzes e aquela bolinha vermelha que acende quando uma camera está ligada que eles procuram. "Eu gostei muito deste filme." "Eu também." "Sabias que (inserir trivialidade cujo único objectivo é demonstrar quão cool, esperto e conhecedor sou)?" "Pois, e não te esqueças que (inserir complemento ao facto anterior, deixar claro que também eu sou cool, esperto e conhecedor)." Tudo isto é muito giro e simpático durante cerca de trinta segundos. Depois, é como ver uma obra sem plot nem conflito, onde todas as palavras são previsíveis e as personagens desinteressantes.

Os antagonistas são a velha geração, nomes num quadro e estrelas que classificam filmes como se estes fossem alunos numa escola primária. Escrevem para eles próprios sem terem a mínima preocupação com aquilo que o público/leitor procura, cada texto uma oportunidade para revelarem a bagagem cinematográfica oferecida pelos anos. Comparam "Lost in Translation" com "Um Americano em Paris" e fazem vénias fáceis a filmes intransponíveis. A ausência de espinha dorsal pode ser uma qualidade profissional. Existe uma racionalização constante e uma frieza que me faz questionar se estes homens gostam de cinema.

"Eternal Sunshine of the Spotless Mind" é um filme sobre relações que nunca irão resultar e pessoas opostas que insistem em abraçar-se porque um momento de carinho é também um minuto de felicidade. O guião de Charlie Kaufman é precioso, humano e invulgar(só em Portugal é que não se reconhece que o escritor é uma voz única no cinema americano, mais, é o primeiro guionista a assumir a condição de 'estrela' sem nunca se sentar na cadeira de realizador), as interpretações equilibradas, a direcção de Michael Gondry adquada e inovadora. Este é um dos filmes mais comoventes e menos sentimentais do ano. A relação entre Jim Carrey e Kate Winslet é tão comum que não há ninguém (excluindo os críticos de cinema, claro) que não se identifique com ela. Todos sofremos e, por vezes, o esquecimento parece ser a melhor solução. Mas isso seria ignorar quem fomos e em quem é que nos tornámos. E, como estava escrito numa caneca que ofereci a uma ex-namorada, "when we look back, we don't remember days, we remember moments". Para a maioria dos críticos portugueses, nada disto importa. "Eternal Sunshine of the Spotless Mind" foi tratado como outra qualquer comédia romântica. Na minha opinião, e este texto é apenas e só a minha opinião, talvez lhes falte emoção. Melhor ainda, talvez lhes falte tesão. Ou, como disse um amigo, talvez lhes falte simplesmente vida.

segunda-feira, maio 17, 2004

Para I.

Dia de sol

Algo nasce, não sei bem o quê, na minha pele quando olho para o mar. Um cheiro que me é estranho, a sensação de inexistência perante a explosão de azul. Sou apenas carne. Os pés enterrados na areia, sapatos e meias pretas que perderam funções, joelhos juntos e apertados contra o peito com uma corrente de braços. Há a brisa que se transforma em vento e o sol que devia significar calor mas não passa de ardor, as rugas ganham vida, todos os erros e defeitos desenhados na face, as bruxas da feira popular estão erradas, são as linhas debaixo dos olhos que revelam o futuro. As mãos são efémeras, gastas em actos mundanos, pratos lavados, cortes de papel, unhas roídas não por nervosismo, apenas algo para fazer nos momentos de tédio.

À minha volta estão famílias e sacos de plástico, cães presos pela trela a chapéus de sol, homens que percorrem círculos a vender gelados e bolas de Berlim, toalhas estendidas e o cheiro a creme bronzeador. Procura-se beleza como se esta fosse uma questão de cor. Alguns correm junto à água salgada, outros cruzam os braços e encaram-na em silêncio, talvez escutem um monólogo natural e biológico, cada vaga de ondas um levantar de voz e um gesto impulsivo e estudado. Mas se o mar fala comigo, não percebo a mensagem.

Uma loira que passa por mim e não sorri, olha porque é estranho alguém estar vestido com um fato azul na praia, descalço e sem óculos escuros. Sigo-a até à barraca onde vendem garrafas de plástico com água gelada. Toco-lhe no ombro porque ela me parece uma entidade transcendente e eterna. Toco-lhe para desafiar o intocável.

Isto não é uma festa formal, sabes?

Não digo nada, não tenho nada para dizer, ela roda a tampa de plástico e estende o braço. Bebo dois golos que me fazem doer os dentes. Os olhos abrem.

Estou apenas a esconder os pelos dos ombros.
Parece-me que queres esconder bastante mais do que isso. Sabes, existe quem me ache bonita. Mas penso que sou simples.
Talvez seja o facto de acreditares que és simples que te torna bonita.
As pessoas que olham para mim, elas não sabem que o meu corpo é sagrado.
O meu não. Não passa de osso, carne, pele, sangue, suor e cicatrizes. Está usado.
Adeus, homem de negócios.
Adeus, mulher dourada.

Sento-me numa cadeira de madeira e observo-a enquanto regressa e se transforma numa sombra, todos somos contornos quando enfrentamos o sol. Procuro um cigarro nos bolsos mas apenas encontro um maço vazio. Sinto-lhe o olhar, que a sua boca se move quando pensa em mim, a revelação do branco a cada toque de lábios. Tem olhos verdes e esfrega os dedos dos pés para se livrar de milhares de grãos de areia. Levanto-me e procuro o carro. Os sapatos ficam para trás num acto de lembrança. Esta é uma estória de amor eterna que apenas durou um segundo, canção sem melodia, carta de amor em branco porque sem esperança apenas tenho espaço. E, se não perder algo, qualquer coisa, terei dúvidas de que alguma vez existiu.

quinta-feira, maio 13, 2004

“Toda a vida tentamos estabelecer uma ligação entre sexo e amor. Continuamos a falhar miseravelmente. Por uma simples razão. Não há nenhuma”.

Ela é capaz de frases assim, perfeitos desarmes linguísticos. E nunca existe resposta quando as certezas são universais. Bebe um chá verde com mel, devagar porque tem medo de queimar os lábios, e apoia a chávena em ambas as mãos. A estabilidade é alcançada através de convicção.

“W.H. Auden disse: ‘Baseado na minha experiência de vida, cheguei à conclusão que só os tolos é que não apreciam tabaco e rapazes”.

Sorri porque sabe que foi apanhada a seduzir.

quinta-feira, maio 06, 2004

Testemunho

Quando acordei, não fazia ideia de onde estava. Dormi numa espécie de sala com um frigorífico encostado a um canto que parecia respirar. A primeira coisa que vi foi um velho de barba branca e chapéu de cowboy que bebia leite directamente do cartão. Senti ao meu lado a presença de uma rapariga de cabelos longos castanhos. Não me parecia portuguesa, mas não existe nacionalidade no sono, não estou certo. “Hi”, ele disse, “was my daughter nice?” Conseguia cheirar a destilação corporal de bebidas alcoólicas a mais de quatro metros, tal como o meu corpo transpirava whiskey irlandês e a boca era alcatrão puro. “Just perfect”, respondi, sem certeza nenhuma, era apenas a única resposta politicamente correcta que me veio à cabeça. Ele sorriu orgulhoso. Esperei que saísse antes de me levantar. Procurei a minha roupa em cantos e esquinas. Não encontrei uma meia. Vesti-me em silêncio. Ela acordou. Afastou os lençóis do seu corpo nú, caminhou na minha direcção e beijou-me na face. “Have a beautiful life”. Piscou-me o olho e voltou para a cama. Abandonei o apartamento, desci as escadas de mármore, passei por uma porta metalizada e dei por mim numa rua com os prédios todos iguais, esta podia ser qualquer cidade, qualquer subúrbio, qualquer vida. Caminhei perdido até encontrar um mapa da cidade de Lagos. Você está aqui. Respirei fundo. O sol brilhava apesar de incomodado pelas nuvens. Sentia-me como se tivesse acabado de nascer. Puro e simples. A rua na minha direita descia em direcção ao centro da cidade. Dei o primeiro passo. É sempre o mais difícil. O meu pé direito nú sentia as falhas na sola do sapato gasto.

quarta-feira, maio 05, 2004

Rádio

A: Boa noite. Está no ar.
B: Boa noite, Tiago. Como é que estás?
A: Muito bem, obrigado. Estou a falar com?
B: Ricardo Mendes. Quero te dizer que sou um enorme...
A: E está a ligar de?
B: Lisboa. Eu sempre...
A: E o que faz Ricardo?
B: Guio um táxi. Sabes que ouço...
A: E está a ligar-nos porque?
B: Bem, primeiro quero dizer que o teu programa é a minha companhia nocturna dos últimos dez anos. Sinto que te conheço apesar de ser a primeira vez que ligo. E quero agradecer-te.
A: Não tem nada que agradecer. Eu é que agradeço por ouvir.
B: Não, não, não, obrigado eu Tiago.
A: Obrigado Ricardo. Diga lá então o que é que se passa.
B: Telefono para pedir desculpa...
A: Desculpa?
B: Sim.
A: Quer pedir desculpa pelo quê?
B: Pelo estado das coisas, é que...
A: Quais coisas, Ricardo?
B: ...eu não sabia...
A: Quais coisas?
B: ...mas sei também que a ignorância da lei não serve de atenuante...
A: Ricardo, Ricardo, Ricardo...
B: Sim?
A: Uma coisa de cada vez. O que é que aconteceu?
B: É que isto está tudo uma merda...
A:... Ricardo, não utilize vernáculo...
B: Vernáculo?
A: Palavrões. Continue...
B:... é que isto está tudo uma porcaria, mas eu não sabia quem era. Só descobri quando...
A: Descobriu o quê?
B: Que sou Deus mas eu já devia saber, porque Jesus também era humano...
A: Você é Deus?
B: Sim.
A: Você, Ricardo Mendes, taxista em Lisboa, é Deus.
B: Exacto.
A: Ricardo?
B: Sim?
A: Custa-me a acreditar.
B: Eu compreendo.
A: Compreende que custa a acreditar. Um taxista de Lisboa...
B: Jesus era carpinteiro.
A: Sim, Ricardo, Jesus era carpinteiro. Mas você não é Deus. (pausa)
B: Tiago?
A: Sim.
B: Como é que sabes que não sou Deus?
A: (pausa) Sabes que mais, Ricardo. Vamos fazer o contrário. Como é que você sabe que é Deus?
B: Ora bem, então foi o seguinte. Ainda há menos de três horas peguei dois clientes que queriam ir para Campo de Ourique...
A:... Que tipo de clientes?
B:... gente bem parecida, um tipo bronzeado e alto e uma miúda gira, loira. Quando parei o carro, nem tive tempo de me virar para trás. Senti o cano de uma pistola na minha nuca...
A: ... isto em Campo de Ourique...
B:... exacto....
A:... continue....
B: O tipo disse que se me mexesse um centímetro que fosse, que disparava. Fechei os olhos e comecei a rezar. Nunca rezei com tanta força. Não faço ideia de quanto tempo passou mas quando abri os olhos eles já tinham ido à vida deles...
A: ...Ricardo?
B: Sim?
A: Primeiro, quero lamentar o acontecido e desejar que esses criminosos sejam capturados. Fico contente ainda que tenha escapado ileso ao percalço...
B:...obrigado...
A: ...mas nada disso me diz que você é Deus...
B: .... Tiago?
A: Ricardo?
B: Foi quando abri os olhos que percebi.
A: Percebeu o quê?
B: Que enquanto rezava, estava apenas a falar comigo próprio.
A: (pausa) Ricardo...
B: Sou eu que ouço as minhas orações...
A: Ricardo...
B: Sou eu que controlo a vida...
A: Ricardo...
B:...não uma entidade misteriosa...
A: Ricardo...
B:...Tiago?
A: Segundo o seu ponto de vista, não seriamos todos Deus? Todos nós que rezamos? E aqueles que não rezam? Seriam excluídos dessa divindade humana?
B: Não, Tiago, espera...
A:...e imaginando que somos todos Deus, muitos de nós não estamos preparados para essa tarefa. Eu não quero essa responsabilidade!
B:... mas Tiago...
A:... não será melhor deixar as coisas como estão? Deus no seu trono lá em cima, nós aqui em baixo a pecar para depois sermos perdoados? Não é melhor Ricardo?
B:... Eu...
A: Não é mais fácil? Não complicar as coisas? Mesmo que seja Deus? Até porque se for mesmo Deus, aconselho-lhe a não dizer nada a ninguém. Nada. Neste momento tem livros escritos, best sellers, sobre si, as pessoas matam-se umas às outras em seu nome, esfolam os joelhos para lhe agradecerem por nada... a campanha de markting está a resultar de forma esplendorosa.
B: Eu...
A: Está no auge da sua carreira como entidade divina. Quer estragar tudo? Quer mesmo passar de Deus todo poderoso para Deus, o condutor de táxi, Ricardo?
B:... eu... Jesus era carpinteiro... não seria melhor todos assumirmos a responsabilidade pelo nosso destino e acções...
A: Mas veja o que aconteceu a Jesus...
B: Pois...
A: Tenho razão?
B: Eu...
A: Tenho razão, Ricardo?
B: Talvez...
A: Talvez?
B: Sim. Sim.
A: OK, Ricardo, obrigado por ter telefonado. Resto de uma boa noite. E não confie em tipos bronzeados. Estamos em Janeiro, por amor de Deus. (pausa). Boa noite, está no ar.
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