terça-feira, abril 20, 2004

Momentos

Porque é que estás a olhar assim para mim?
Assim como?
Como se me amasses?

Viam filmes juntos. Sentavam-se no chão, ele com as costas contra o sofá preto, ela encaixada entre as pernas tapadas por ganga suja. Bebiam copos de chá gelado e, mesmo às escuras e com as sombras da televisão desenhadas no rosto, mesmo sem nunca se virarem, não tiravam os olhos um do outro.

Ele estava na casa de banho do restaurante, a lavar as mãos. A porta abre-se e ela entra. Tem um sorriso na face e uma madeixa que lhe cobre o olho direito. “Estou a ser marota?”. Beijam-se.

Bebem Pats Blue Ribbon da lata enquanto se sentam numa cadeira alta ao pé do balcão. Mulheres dançam e despem-se. Alguém paga um copo, um cliente coloca-se de cabeça para baixo e uma morena de calças de cabedal e tatuagem nas costas cospe-lhe tequilha para a boca. Antes de saírem, roubam soutiens que mais tarde atiram pela janela de um taxi em andamento. Quando chegam à esquina, descobrem que nenhum tem dinheiro. Fogem do condutor apenas para dar a volta ao quarteirão, onde ele continua à espera. Uma chapada. Correm de novo, escondem-se até ele desistir. Despedida, um pede cigarros, recebe três que acende ao mesmo tempo. Para conseguir abrir a porta, coloca dois no bolso. Só quando chega ao quinto andar é que descobre o casaco está a arder. Atira-o para o chão, dá-lhe pisadelas até o fumo desaparecer. Entra em casa. “O que é que te aconteceu?” “Nova Iorque”.

Um café com leite, um bolo recheado e uma garrafa de água. Observam as pessoas à sua volta, pai e mãe que nunca cruzam o olhar enquanto o filho come uma torrada, empregados de laço e cintura preta, uma senhora sentada sozinha numa mesa para quatro que fuma cigarros e tenta lembrar-se se existe vida alem disso. Eles falam de nada. São oito da manhã. “Leva-me para casa”.
Shattered Glass

Não é um filme sobre jornalistas. É uma revelação sobre os perigos do deslumbramento, a inexistência de limites quando o objectivo último é a celebridade e a adoração. Sthephen Glass, um miúdo de 25 anos que escrevia para o The New Republic e colaborava com a Rolling Stone e a falecida George, não inventou mais de quarenta artigos porque era preguiçoso. O seu objectivo não era evitar entrevistas monótonas, dezenas de horas ao telefone na esperança que alguém atenda do outro lado, prazos irreais e longas noites com os olhos feridos pela florescência do monitor. Não. Glass enganou a sua revista, os colegas e os leitores porque queria ser o centro das atenções. Aquele que todos procuram nas festas. O menino bonito. Mesmo quando confrontado com as mentiras, a sua atitude continuou infantil, negar, sempre, até ao limite, até chegar ao ponto onde o silêncio é a única resposta. Porque apenas os Homens são capazes de reconhecer os próprios erros em voz alta. Apesar de eu ser jornalista, uma profissão a que não identifico honra ou mérito, tudo o que senti por Glass foi pena. Não o consegui desprezar. Este mentiroso patológico, agora um romancista a viver em Nova Iorque, terra fantástica onde até os freaks e criminosos estão em casa, é um sinal dos tempos. Neste mundo, apenas interessa o nome no jornal, a cara na capa, a identidade como legenda. E, escreveu James Jones, “there's not some other world out there where everything's gonna be okay. There's just this one, just this rock.” Não sinto pena por Glass ter sido apanhado, pelo contrário. Apenas lamento que, nesta pedra onde vivemos, a dignidade profissional e pessoal seja tantas vezes trocada pela aparência das luzes.

quinta-feira, abril 15, 2004

Baz Luhrmann - Everybody's Free (To Wear Sunscreen)

(não tenho por hábito colocar escritos de outros na Terrível Verdade, mas considero esta letra interessante por algumas razões: tem piada, é da autoria de Baz Luhrman, realizador de Moulin Rouge, e alguns dos conselhos são bons e devem ser seguidos. Outros, nem por isso)

Ladies and Gentlemen of the class of ’99
If I could offer you only one tip for the future, sunscreen would be
it. The long term benefits of sunscreen have been proved by
scientists whereas the rest of my advice has no basis more reliable
than my own meandering experience…I will dispense this advice now.

Enjoy the power and beauty of your youth; oh nevermind; you will not
understand the power and beauty of your youth until they have faded.
But trust me, in 20 years you’ll look back at photos of yourself and
recall in a way you can’t grasp now how much possibility lay before
you and how fabulous you really looked….You’re not as fat as you
imagine.

Don’t worry about the future; or worry, but know that worrying is as
effective as trying to solve an algebra equation by chewing
bubblegum. The real troubles in your life are apt to be things that
never crossed your worried mind; the kind that blindside you at 4pm
on some idle Tuesday.

Do one thing everyday that scares you

Sing

Don’t be reckless with other people’s hearts, don’t put up with
people who are reckless with yours.

Floss

Don’t waste your time on jealousy; sometimes you’re ahead, sometimes
you’re behind…the race is long, and in the end, it’s only with
yourself.

Remember the compliments you receive, forget the insults; if you
succeed in doing this, tell me how.

Keep your old love letters, throw away your old bank statements.

Stretch

Don’t feel guilty if you don’t know what you want to do with your
life…the most interesting people I know didn’t know at 22 what they
wanted to do with their lives, some of the most interesting 40 year
olds I know still don’t.

Get plenty of calcium.

Be kind to your knees, you’ll miss them when they’re gone.

Maybe you’ll marry, maybe you won’t, maybe you’ll have children,maybe
you won’t, maybe you’ll divorce at 40, maybe you’ll dance the funky
chicken on your 75th wedding anniversary…what ever you do, don’t
congratulate yourself too much or berate yourself either – your
choices are half chance, so are everybody else’s. Enjoy your body,
use it every way you can…don’t be afraid of it, or what other people
think of it, it’s the greatest instrument you’ll ever
own..

Dance…even if you have nowhere to do it but in your own living room.

Read the directions, even if you don’t follow them.

Do NOT read beauty magazines, they will only make you feel ugly.

Get to know your parents, you never know when they’ll be gone for
good.

Be nice to your siblings; they are the best link to your past and the
people most likely to stick with you in the future.

Understand that friends come and go, but for the precious few you
should hold on. Work hard to bridge the gaps in geography and
lifestyle because the older you get, the more you need the people you
knew when you were young.

Live in New York City once, but leave before it makes you hard; live
in Northern California once, but leave before it makes you soft.

Travel.

Accept certain inalienable truths, prices will rise, politicians will
philander, you too will get old, and when you do you’ll fantasize
that when you were young prices were reasonable, politicians were
noble and children respected their elders.

Respect your elders.

Don’t expect anyone else to support you. Maybe you have a trust fund,
maybe you have a wealthy spouse; but you never know when either one
might run out.

Don’t mess too much with your hair, or by the time you're 40, it will
look 85.

Be careful whose advice you buy, but, be patient with those who
supply it. Advice is a form of nostalgia, dispensing it is a way of
fishing the past from the disposal, wiping it off, painting over the
ugly parts and recycling it for more than it’s worth.

But trust me on the sunscreen…



quarta-feira, abril 14, 2004

Exercise in lying

It was over. Again. They sat in the car, no music, no light, as she explained the reasons why it couldn’t go on. He felt desperate. Impotent. John would have cried if he wasn’t so tall, but a man his size could never shed tears. “I don’t have any water in me”, he thought, as he left the car without looking back. Shoulders imploding, hands on his pockets, eyes on the sidewalk, an overwhelming sense of misery. It was over. Again.

That same night, legs stretched on the bed with one ankle over the other, the left shoe still on, he thought of her. How much he would miss having her. Sleep came and, for the first time, it was one, uninterrupted, continuous, like a drunkard lying in a park bench. The blackouts can be friendly, wrapped arms that swallow you whole and suspend the world for hours.

When he woke up, she was there. No messages on the cell phone, though. It was early and sunny. John left the house and ran for miles until he reached the river. The wind dried the sweat; there was no water in him, still. He smoked a moist cigarette he kept in his hand, sun burning the face and each arm as he said out loud; “can you save yourself and kill yourself at the same time?”.

He showered with his socks still on. Hot water punching his ear and neck, eyes closed and a new feeling, this time of self-deprecation. A terrible sadness. He then cried for the first time, because he figured it out. There was nothing but indifference in him. He didn’t give a fuck. That’s the day when John found out that all love is imaginary.

domingo, abril 04, 2004

Heresia

No outro dia, telefonei a deus. Arranjei o número de telemóvel dele através de um amigo comum. Tentei ligar-lhe mas estava desligado. Soube depois que passa os fins de semana no Colombo, vestido num fato de treino azul da Nike, atacadores desapertados e barba por fazer. Come um hambúrguer e bebe Coca-Cola, observa as montras durante horas porque se diverte com os erros humanos. Depois, compra bilhete para uma comédia romântica onde nunca se ri. Deixei mensagem. Respondeu no dia seguinte e combinámos ir beber uma imperial ao final da tarde.
Deus está gordo, como a maioria dos reformados. Quando fala contigo, costas inclinadas contra a cadeira, entrelaça os dedos em cima do estômago e brinca com os polegares. O fim do sol ainda o encanta, utiliza óculos escuros porque “existem tipos de beleza tão puros que precisam de filtro”. Descasca amendoins com uma só mão e nunca te olha de frente. Perguntei-lhe o que é que se passa. “O que é que se passa com o quê?”. Com tudo, respondi.
“Não sei quando é começou este rumor de que sou o responsável. Acusarem-me, ou darem-me mérito, se quisermos ver as coisas de outra forma, é o mesmo que criticarem o homem das obras pelo facto de não haver água quente num prédio ou o elogiarem porque os acabamentos são bonitos. Não tenho nada a ver com isso, não é minha responsabilidade, orientem-se. O meu trabalho está feito. Desenmerdem-se”.
“Não julgo ninguém. Podem dar porrada à vossa mulher sempre que o Benfica perde, que não me importo. Podem snifar cocaína até descobrirem que os vossos olhos já não fecham, que não me importo. Podem ver televisão todos os dias, episódios consecutivos dos morangos com açúcar, evitar qualquer tipo de esforço para comunicar com o vosso próximo, que não me importo. Esta é a vossa vida, não a minha. E se tiverem um problema com mundo que criei, existe uma solução muito simples. Façam o vosso. Não é tão difícil como parece. Eu demorei apenas uma semana. Claro que houve imperfeições. Mas também existem coisas brilhantes. Como os grãos de café e os dinossáurios.”
Deus é uma criatura amarga, mas não indiferente. Só quem ama pode desiludir-se. Convidou-me depois para jantar, falámos de futebol, política e orgasmos femininos. Jogámos matraquilhos no Bairro Alto e saímos invictos. Disse-me que tinha fixado residência em Portugal porque é o único país do mundo onde “não fazer nada pode ser um trabalho muito bem pago”. Bebeu demais e acabei por o meter num táxi. Adormeceu no banco de trás antes de dizer o destino. O condutor arrancou sem fazer ideia para onde ia, mas a algum sítio tinha que chegar. Não se pode andar para sempre. Fui para casa e fumei um cigarro antes de me deitar. Talvez aquele tipo não fosse deus. Mas soava a ele.
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