terça-feira, outubro 25, 2005

Auto-terroristas

O primeiro episódio documentado teve lugar no dia três de Fevereiro de dois mil e quatro. João Pereira, um agente de seguros de vinte e nove anos, recordado por vizinhos e amigos como pessoa calma e bem educada, estaciona o carro à porta do Centro Cultural de Belém e paga ingresso para ver a exposição ‘World Press Photo’. Cruza-se com um segurança que fuma um cigarro a quem diz

Boa tarde

sem resposta. Estão pouco mais de dez pessoas presentes e sessenta e quatro imagens com holofotes particulares que lhes acrescentam luz e confiança. João olha para crianças mutiladas, actores e desportistas, paisagens, fome, inundações, terramotos, todos os desastres naturais que ficam tão bem a duas cores. Caminha num passo curto e demorado, mãos atrás das costas, os sapatos arrastam-se no chão de madeira encerado, uma dança melancólica e indiferente.

Podemos andar sem levantar os pés e provocar a nossa própria nuvem de terra e sujidade.

Fixa-se num grupo de refugiados de violência que existiu porque foi transmitida em directo por cento e vinte e três canais mundiais, uma onda magnética que invadiu ecrã e mentes, algo para desanuviar entre o drama real dos jogos de futebol e reality shows. Trinta pessoas agrupadas numa carrinha de caixa aberta, algumas acenam para a camera, outros tentam conservar a dignidade escoada e afastam o olhar. Caixotes que servem de malas, panos sujos enrolados ao joelho como curativos, cabelos duros de terra, dedos gastos sem impressões digitais. Uma camada de vidro separa a foto do espectador, transfere-a para uma dimensão superior, intocável. João tira do bolso um canivete e desaperta quatro parafusos, um em cada canto. O acto é metódico e ensaiado. Ao segurar aquele retângulo transparente apenas vê a sua própria mão, linhas compridas e cruzadas e perdidas.

Anos antes, entre ginjas e imperiais, uma vidente da feira popular disse-lhe que teria uma vida feliz, dois casamentos e boa carreira profissional.

Agora, perante o anti-reflexo, não é sequer um fantasma. A lâmina de aço inóxidavel de fabrico suíço corta os pulsos com uma precisão clínica. Quatro feridas horizontais e profundas ao longo do antebraço, o sangue liberta-se e escorre, a mancha escura alastra-se pela camisa, fios que percorrem o corpo em liberdade e lhe provocam um arrepio quente. Os dedos choram vermelho e João desenha na fotografia letras grotescas e disformes. Nada é mais eloquente do que aquilo que é escrito com glóbulos vermelhos, a coagulação acrescenta aridez e personalidade, pequenas crostas que modificam a fotografia, o encarnado invade o preto e branco daqueles estrangeiros, dá-lhe cor, vida na morte. O sangue seco transforma-se em cinza e, antes de alguém chegar ao local, o auto-terrorista desliza pela parede estéril e a sua face experimenta a impessoalidade do chão. Nunca fecha os olhos, ainda ouve o sapateado dos sapatos pretos do segurança que ficam a dois palmos de distância e a última coisa que vê é o balançar perdido dos atacadores desatados. Este agente de seguros, casamento marcado para Março, sorri. O homem de uniforme castanho, nenhuma preparação, este é apenas um emprego que ajuda a pagar a renda e a educação de um filho que não conhece há mais de um ano, algo para fazer entre os pequenos copos altos de bagaço que acompanham a bica, olha em frente e lê

O princípio de tudo

segunda-feira, outubro 24, 2005

Mais do mesmo

As actas para o concurso directo já foram divulgadas. Manoel de Oliveira conseguiu o subsídio. O projecto em que estive envolvido ficou em 4º lugar (apenas os três primeiros são aprovados), a uma distância de 0,07 pontos do 3º. Sabendo que o júri se voltou a reunir depois de alegadas pressões, imagino que o tenham feito com uma máquina calculadora na mão. Ou talvez apenas tenham acrescentado um número, deslocado uma vírgula, um '5' que se transforma num '6' com um simples movimento de caneta. Ler as actas do júri (escrevo a palavra com letra pequena mas não é um erro) à espera de critérios objectivos é como procurar amor nos braços de uma prostituta. Uma perca de tempo. Afinal, para estas pessoas, para este grupo, para este buraco negro da criatividade, o produtor de Manoel de Oliveira, Miguel Cadilhe, tem mais experiência e capacidade do que o produtor Tino Navarro. O que é fantástico, considerando que Cadilhe produziu, até ao momento, exactamente um (1) filme, 'O Espelho Mágico', que ainda nem sequer estreou. Tino Navarro, por seu lado, tem vinte (20) filmes no curriculum. Bem vindos ao outro lado do espelho, um mundo onde Luís Galvão Telles, o realizador do memorável 'Tudo Isto é Fado', tem mais 'capacidade de comunicação' do que António-Pedro Vasconcelos.

Já foi legislada a nova lei do cinema. Ainda a estou a estudar mas, para ser sincero, parece-me apenas mais do mesmo. O cinema português continuará refém do 'sistema', essa expressão tão frequente que parece englobar tudo o que é obscuro e corrupto no nosso país.

Ainda não houve desmentidos quando à notícia do Independente. Ninguém apareceu a defender a sua honra, não entraram processos por difamação no tribunal. Nem sequer uma conferência de imprensa, ou murros na mesa, ou artigos inflamados. Estas pessoas vivem do silêncio.

terça-feira, outubro 04, 2005

Corrupção Cultural

Boa tarde,

O meu nome é Tiago R. Santos. Gostaria de lhe chamar a atenção para uma notícia divulgada no jornal 'O Independente', a 30 de Setembro de 2005.

"Júri do ICAM muda decisão para apoiar Manoel de Oliveira"

Começo por afirmar que fui parte prejudicada neste processo. Escrevi o argumento para o "Call Girl", projecto de António-Pedro Vasconcelos e Tino Navarro, que foi excluído como consequência das movimentações e influências do Sr. Manoel de Oliveira. Mas não lhe escrevo para me queixar. Gosto de pensar que o faria também se o concurso nos fosse favorável. Isto é, na verdade, um alerta.

Se a notícia é verdadeira, e não existiram desmentidos até à data, há várias questões pertinentes:

1- Como é que o Sr. Oliveira teve conhecimento do resultado de um concurso antes de as actas e classificações serem oficiais?

2- A quem é que o Sr. Oliveira falou para exercer pressão sobre o júri? Considerando o sucesso da 'operação de bastidores', não será um exercício de imaginação supor que falamos de alguém com peso político considerável.

3- Sendo que falamos de dinheiros públicos, não poderá esta 'operação de bastidores' ser classificada como sendo 'trâfego de influências', um crime punido por lei?

4 - O presidente do Júri, o Sr. António Cunha, é o director da Videoteca Municipal de Lisboa. Outros dos elementos do Júri é a Sra. Isabel Ruth, que já participou em sete filmes do Sr. Manoel de Oliveira. Não haverá, neste último caso, conflito de interesses? Serão estas as pessoas mais qualificadas para ajudar a decidir quais os filmes produzidos em Portugal? Olhar para a constituição dos júris, perceber a sua subjectividade e, porque não dize-lo, incompetência, é começar a decifrar as razões do divórcio entre o público e o cinema português. Apenas entre 0,4% e 1% dos espectadores de cinema em Portugal assistem a produções nacionais.

5- A nova Lei das Artes do Cinema e do Audiovisual entrou em vigor em 18 de Setembro de 2004. Ainda não foi regulamentada. Porque? Os objectivos centrais do novo diploma eram "o apoio ao desenvolvimento sustentado da produção" e "a criação de um tecido empresarial". Quem é que perderia com esta nova lei? Talvez aqueles que estejam confortáveis com o actual estado de coisas. Falamos de pessoas que vivem na garantia de dois subsídios por ano e na irresponsabilidade de quem gasta 650 mil Euros num filme visto, em muitos casos, por menos de cem espectadores.

Muitas outras questões ficam por fazer. Sei também que este é apenas mais um episódio de uma história triste. Um país define-se pela sua cultura e, nesse aspecto, Portugal está podre. Esta não é uma meritocracia. Não é sequer uma Democracia. É o país do Status Quo. Não há lugar ao dinamismo cultural, às novas ideias ou a talentos emergentes. Mas este não é o alerta. O verdadeiro problema é que vamos desistindo. Alguns saem do país, como exilados culturais. Os que ficam são atacados pela estupidez do sistema. A criatividade deixa de existir. Ligo a televisão, abro um livro, entro numa sala de cinema escura e vazia, e sei que a batalha está perdida. Estamos em inferioridade numérica e não temos aliados. A ficção portuguesa está morta. E como é uma guerra invisível, ninguém dá por isso.
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