terça-feira, novembro 23, 2004

The dreams in which I’m dying are the best I ever had - Versão 2.2

Primeiro, uma única luz acesa, essencial, sem calor nunca existe sombra. Depois, um sofá vermelho, uma mesa espelhada que acolhe garrafas de cerveja sem rótulo e cinzeiros cheios de morte em forma de cinza. Ao lado, linhas brancas contínuas e paralelas, duas notas de vinte euros enroladas, um cartão de crédito escuro com uma assinatura autorizada elegante, trabalhada, doze anos de estudos que se concretizam na curva do ‘s’. Algumas pessoas olham para a forma como escreves ‘família’ e descobrem os teus segredos. Continuando, temos uma porta entreaberta com um sinal florescente, ‘saída’, duas pessoas a um canto que se olham de lábios fechados e apenas se tocam com a respiração quente e pesada, uma televisão sem imagem, manchas e linhas cinzentas e pretas, milhares de pontos e alguém sentado na alcatifa, pernas cruzadas, que diz sem nunca se virar para trás

A estática é como um conjunto de estrelas. Se a encarares durante horas, consegues ver o teu destino

Alguém que dança na ausência de música, boca esticada simulando implante de silicone, braços em movimentos sincronizados e paralelos, como se estivessem unidos por um fio de nylon. Pode ser blues, pode ser rock and roll. Um bar com garrafas importadas e copos de formato invulgar, vazios agora mas com lágrimas de vodka, transparência manchada pelo batom, como impressões digitais. A promessa das noites passadas revela-se no chão dos bares à hora de fecho. Bancos altos e vazios, alguns juntos, outros não, e um quadro escuro onde se escreveu a giz

Chegaste tão longe que já não vale a pena voltar (aposto que não te lembras de onde vieste)

Uma presença que entra nas costas, sinto que a sala se altera, torna-se menor, ameaçadora. A mão no meu ombro e um aperto, como fazem os amigos. Um ligeiro empurrão, a noção de que sou conduzido, as veias dilatam-se e o sangue acelera. O perigo é algo que entra dentro do teu corpo e te modifica, as pupilas aumentam de tamanho, o batimento cardíaco é audível, real, físico, como uma erecção. Os dedos tocam-se, encolhem, esticam, procuram fugir da prisão de carne e osso. A manifestação do estômago, o arrasto dos passos pelo chão. Sei que algo vai acontecer. Outra pessoa que aparece no meu lado direito, um sorriso e um cigarro acesso, óculos escuros na escuridão, cravo na lapela a quebrar a ausência de cor. Sem uma palavra, o silêncio são coisas que se dizem, coloca-me um revólver na mão. Sinto-lhe o peso, a rigidez e imortalidade, o punho é árido e tumultuoso.

Se vais matar alguém, a única maneira decente de o fazeres é com uma dessas. A solenidade do acto está no metal frio.

Palavras que me aquecem o ouvido

Duas no peito e uma na cabeça

A porta entreaberta revela uma cadeira de plástico no escuro, a existência amordaçada, uma lâmpada que se acende com uma corrente prateada suspensa, marcas de violência sem derrame. Retiro-lhe o lenço da boca, a ausência de fluidos e vomitado, um olhar limpo e descalço

Não é a primeira vez que me queres matar

Espero ser a última. Quando falas contigo próprio, tratas-te por tu? Aponto-lhe o cano à cabeça, existem alturas em que a adrenalina se torna espessa, sou invadido por euforia, sorrio e disparo. O corpo ganha flexibilidade, faz curvas impossíveis, descontrai-se e é invadido por uma nuvem de fumo.

Espero sangue mas tudo o que existe é ar

Volto para a sala agora vazia. Paredes brancas que prescindem da existência da janelas, tinta que serve de sol. Uma mulher está de pé, braços esticados que acompanham as curvas do corpo, olhos que nunca pestanejam. Ela vê-me. Aproxima-se sem dar um passo, os dedos sentem a minha orelha, deslizam para a boca e tocam na pálpebra que se fecha. Os lábios descolam-se mas as palavras não surgem de imediato, como uma transmissão em directo com alguns segundos de atraso. Apenas quando viro as costas é que ouço

A tua vida não é a tua vida. Já não

No dia seguinte, quando André regressou do emprego, no mesmo momento em que sentia o cheiro da carne que assava no forno, foi abraçado pelas costas, como se um acto de carinho pudesse ser também uma traição. Recebeu um beijo no pescoço, sentiu a humidade do gesto. Abraçou as mãos sem se virar, procurou-lhe o braço. O rosto encaixou-se junto do ombro. Eles pertenciam-se.

Tenho uma prenda de Natal para ti. Estou grávida.

Resposta a inúmeros pedidos (um, para ser mais exacto)

Mais alguns filmes, daqueles que quase ninguém ouviu falar, e que servem de alternativa a quem gosta de cinema:

Fear X (Factor Medo), realizado por Nicolas Winding Refn em 2003, escrito pelo mesmo com a colaboração de Hubert Selby Jr. (que escreveu o romance "Requiem for a Dream" - A Vida não é um Sonho -, adaptado mais tarde para o fantástico filme de Darren Aronofsky)

Dead End (Sem Saída?), filme de terror lynchiano escrito e realizado por Jean-Baptiste Andrea e Fabrice Canepa em 2003

Duel, realizado por Steven Spielberg em 1971, escrito por Richard Matheson. (O primeiro filme do realizador americano, feito para a TV, e onde se vê mais talento do que em qualquer filme com lagartos gigantes ou o Tom Hanks)

The Party (A Festa), escrito e realizado por Blake Edwards em 1968. (Fantástico para quem gosta de comédia física - a primeira ideia era o filme ser mudo - e uma oportunidade para relembrar o génio de Peter Sellers. Para mais exemplos, ver "Dr. Strangelove" ou "Being There").

11'09''01 (11 Perspectivas) - realizado e escrito por onze diferentes realizadores de diferentes partes do mundo. (Considero-me um 'newyorker' e, apesar de gostar mais de alguns episódios do que outros, este foi um filme que me emocionou. Fiquei com uma frase que escrevi num pequeno pedaço de papel e pendurei no quadro que cortiça. Aparece em fundo branco na curta do Alejandro González Iñarritu. "A Luz de Deus Guia-nos ou Cega-nos?")
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