Did you have yourself a merry little Christmas?
O Natal é um momento de luto. Um dia dos mortos com pinheiros e presépios. Familiares rodeados pelos espíritos de pessoas que antes, não foi assim há tanto tempo, partilhavam a ocasião. Ali, no mesmo lugar, sentados naquela cadeira, no canto.
Eu tenho os meus dois fantasmas. Avô e Avó. Nunca gostavam de nada que viesse embrulhado em papel de prenda.
‘Porque é que foram gastar dinheiro? Porque é que eu preciso disto? Ai meu Deus, para que tanta coisa?’
Era miúdo, mas acho que os compreendia. Recebiam sempre pijamas, camisolas de lã, lenços para ir à missa. Olhavam para nós, quase-pessoas, enquanto descobríamos filmes, livros e legos, mesas de bilhar em miniatura. Não estou certo se o sorriso deles era provocado pela comoção inevitável que se sente ao observar crianças felizes, ou de incompreensão perante o nosso entusiasmo por coisas estranhas.
O Avô e a Avó ofereciam sempre dinheiro, que colocavam num envelope branco, sem nome ou data, porque cada neto recebia o mesmo. Iam buscar as notas a uma gaveta localizada atrás do balcão da mercearia, onde as moedas soltas deslizavam para se esconderem no plástico que forrava o chão da gaveta, as pontas dos cantos descoladas pelo tempo.
Eles não falavam muito, e quando o faziam era para perguntar se queríamos alguma coisa para comer, se já tínhamos namorada ou como é que estávamos na escola. O meu Avô, que todos os Domingos tinha em casa mais de dez pessoas a jogar sueca, com cartas gastas e pancadas na mesa a indicar que ‘está seco’ a espadas, desviava o olhar para mim quando o beijava na face, mesmo antes de entrar para o Alfa Romeu com os estofos quentes, já de regresso a Lisboa, e dizia sempre
‘Porta-te bem’.
A última vez que o vi estava numa cama de hospital, sem dentes e com olhos assustados. A sua massa corporal parecia reduzida a metade. Ele agora falava muito, sem parar, mas com as letras trocadas, como se fosse um idioma único, pessoal, uma invenção prodigiosa para alguém que apenas tinha a quarta classe. Beijei-o na testa antes de entrar na terra, mesmo quando as velhas disseram para não o fazer, porque ‘podia apanhar a doença’. Nesse dia, do seu funeral, a minha avó continuava a perguntar
‘Onde é que o meu Homem se meteu?’
porque nunca tinha imaginado a vida sem ele. Ela viria a morrer a 21 de Novembro de 2005, o dia do meu aniversário, depois de alguns anos num lar. A senilidade destruiu-lhe o cérebro, o desgosto roubou-lhe a alma. A minha irmã queria colocar uma fotografia de família nas suas mãos, mas as velhas não o permitiram porque
‘Se o fizeres, os mortos vão-te também querer levar’
sem perceberem que eles continuam aqui. Sentados no mesmo sítio, naquela cadeira junto ao canto, a observarem os netos e os filhos, a família e a vida que inventaram através de actos de simplicidade.
O Natal é um momento de luto. Um dia dos mortos com pinheiros e presépios. Familiares rodeados pelos espíritos de pessoas que antes, não foi assim há tanto tempo, partilhavam a ocasião. Ali, no mesmo lugar, sentados naquela cadeira, no canto.
Eu tenho os meus dois fantasmas. Avô e Avó. Nunca gostavam de nada que viesse embrulhado em papel de prenda.
‘Porque é que foram gastar dinheiro? Porque é que eu preciso disto? Ai meu Deus, para que tanta coisa?’
Era miúdo, mas acho que os compreendia. Recebiam sempre pijamas, camisolas de lã, lenços para ir à missa. Olhavam para nós, quase-pessoas, enquanto descobríamos filmes, livros e legos, mesas de bilhar em miniatura. Não estou certo se o sorriso deles era provocado pela comoção inevitável que se sente ao observar crianças felizes, ou de incompreensão perante o nosso entusiasmo por coisas estranhas.
O Avô e a Avó ofereciam sempre dinheiro, que colocavam num envelope branco, sem nome ou data, porque cada neto recebia o mesmo. Iam buscar as notas a uma gaveta localizada atrás do balcão da mercearia, onde as moedas soltas deslizavam para se esconderem no plástico que forrava o chão da gaveta, as pontas dos cantos descoladas pelo tempo.
Eles não falavam muito, e quando o faziam era para perguntar se queríamos alguma coisa para comer, se já tínhamos namorada ou como é que estávamos na escola. O meu Avô, que todos os Domingos tinha em casa mais de dez pessoas a jogar sueca, com cartas gastas e pancadas na mesa a indicar que ‘está seco’ a espadas, desviava o olhar para mim quando o beijava na face, mesmo antes de entrar para o Alfa Romeu com os estofos quentes, já de regresso a Lisboa, e dizia sempre
‘Porta-te bem’.
A última vez que o vi estava numa cama de hospital, sem dentes e com olhos assustados. A sua massa corporal parecia reduzida a metade. Ele agora falava muito, sem parar, mas com as letras trocadas, como se fosse um idioma único, pessoal, uma invenção prodigiosa para alguém que apenas tinha a quarta classe. Beijei-o na testa antes de entrar na terra, mesmo quando as velhas disseram para não o fazer, porque ‘podia apanhar a doença’. Nesse dia, do seu funeral, a minha avó continuava a perguntar
‘Onde é que o meu Homem se meteu?’
porque nunca tinha imaginado a vida sem ele. Ela viria a morrer a 21 de Novembro de 2005, o dia do meu aniversário, depois de alguns anos num lar. A senilidade destruiu-lhe o cérebro, o desgosto roubou-lhe a alma. A minha irmã queria colocar uma fotografia de família nas suas mãos, mas as velhas não o permitiram porque
‘Se o fizeres, os mortos vão-te também querer levar’
sem perceberem que eles continuam aqui. Sentados no mesmo sítio, naquela cadeira junto ao canto, a observarem os netos e os filhos, a família e a vida que inventaram através de actos de simplicidade.