terça-feira, dezembro 27, 2005

Did you have yourself a merry little Christmas?

O Natal é um momento de luto. Um dia dos mortos com pinheiros e presépios. Familiares rodeados pelos espíritos de pessoas que antes, não foi assim há tanto tempo, partilhavam a ocasião. Ali, no mesmo lugar, sentados naquela cadeira, no canto.

Eu tenho os meus dois fantasmas. Avô e Avó. Nunca gostavam de nada que viesse embrulhado em papel de prenda.

‘Porque é que foram gastar dinheiro? Porque é que eu preciso disto? Ai meu Deus, para que tanta coisa?’

Era miúdo, mas acho que os compreendia. Recebiam sempre pijamas, camisolas de lã, lenços para ir à missa. Olhavam para nós, quase-pessoas, enquanto descobríamos filmes, livros e legos, mesas de bilhar em miniatura. Não estou certo se o sorriso deles era provocado pela comoção inevitável que se sente ao observar crianças felizes, ou de incompreensão perante o nosso entusiasmo por coisas estranhas.

O Avô e a Avó ofereciam sempre dinheiro, que colocavam num envelope branco, sem nome ou data, porque cada neto recebia o mesmo. Iam buscar as notas a uma gaveta localizada atrás do balcão da mercearia, onde as moedas soltas deslizavam para se esconderem no plástico que forrava o chão da gaveta, as pontas dos cantos descoladas pelo tempo.

Eles não falavam muito, e quando o faziam era para perguntar se queríamos alguma coisa para comer, se já tínhamos namorada ou como é que estávamos na escola. O meu Avô, que todos os Domingos tinha em casa mais de dez pessoas a jogar sueca, com cartas gastas e pancadas na mesa a indicar que ‘está seco’ a espadas, desviava o olhar para mim quando o beijava na face, mesmo antes de entrar para o Alfa Romeu com os estofos quentes, já de regresso a Lisboa, e dizia sempre

‘Porta-te bem’.

A última vez que o vi estava numa cama de hospital, sem dentes e com olhos assustados. A sua massa corporal parecia reduzida a metade. Ele agora falava muito, sem parar, mas com as letras trocadas, como se fosse um idioma único, pessoal, uma invenção prodigiosa para alguém que apenas tinha a quarta classe. Beijei-o na testa antes de entrar na terra, mesmo quando as velhas disseram para não o fazer, porque ‘podia apanhar a doença’. Nesse dia, do seu funeral, a minha avó continuava a perguntar

‘Onde é que o meu Homem se meteu?’

porque nunca tinha imaginado a vida sem ele. Ela viria a morrer a 21 de Novembro de 2005, o dia do meu aniversário, depois de alguns anos num lar. A senilidade destruiu-lhe o cérebro, o desgosto roubou-lhe a alma. A minha irmã queria colocar uma fotografia de família nas suas mãos, mas as velhas não o permitiram porque

‘Se o fizeres, os mortos vão-te também querer levar’

sem perceberem que eles continuam aqui. Sentados no mesmo sítio, naquela cadeira junto ao canto, a observarem os netos e os filhos, a família e a vida que inventaram através de actos de simplicidade.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Correcção

De acordo com a Doutora Inês Luís Carlos, também conhecida como minha namorada, devo ter cuidado para não cair em preconceito. Parece que o comportamento humano é caracterizado por um contínuo entre passividade e agressividade. O ponto médio, também designado por assertividade, seria o ideal. O que se passa com os jovens do cinema é que eles revelaram uma tendência para o pólo da agressividade, algo que pode ser originado por factores sócio-culturais, como o fenómeno dos grupos de pares, e educacionais, através da observação e imitação dos comportamentos parentais.

Ou seja, não são atrasados mentais, como eu talvez tenha insinuado.

São apenas pessoas muito, muito desenquadradas.

Ou, como eles estavam em maioria, talvez fosse eu que estava a mais.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Os Reis da Selva

Está um tipo de brinco e cabelo espetado à minha frente, que atende o telemóvel e diz

‘Estou a ver o King Kong. Não, não, posso falar, não há problema. Mais ou menos, o macaco é giro’

Ao seu lado, a rapariga chama ‘Cabra’ à Ann Darrow

Há uma fila de homens enormes que também falam com as personagens do ecrã e batem palmas enquanto comem pipocas. Antes, dois elementos do grupo foram expulsos por polícias, apesar de prometerem que

‘Está bem, eu compro um bilhete’

Uma criança de boné e copo de papel de cinco litros com Coca-Cola levanta-se três vezes durante a projecção, nunca pede ‘desculpa’ ou ‘com licença’ e insiste em pisar os pés à minha namorada.

Entretanto, os polícias ficam à porta de saída, a ver o filme. Como não se ouve o barulho da estática, sei que os rádios que os ligam à Central estão desligados.

Estamos nas Amoreiras, no Centro de Lisboa.

Antes, um amigo dizia-me que já não tinha paciência para ir ao cinema. Preferia o ecrã plasma, as colunas de som e o conforto do sofá. E a garantia de silêncio.

E, naquele segundo, numa sala repleta de pessoas que não fazem ideia de como se devem comportar, ou não estão interessadas em o fazer, pensei que ele poderá ter razão.

Mas eu não tenho ecrã plasma, colunas de som e o meu sofá não é assim muito confortável. E, como sou contra a Pirataria, teria que esperar quatro meses até a edição do filme em DVD.

Ou seja, estou fodido, de uma maneira ou doutra.

Desafio para um duelo qualquer pessoa que acredite que o Homem é um animal civilizado.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Raro pensamento natalício

Um dos hábitos que tenho, quando vou pela primeira vez a casa de alguém, é olhar para as prateleiras, ver quais são os livros que estão arrumados entre as molduras com fotografias das viagens ao Brasil. É um exercício engraçado porque há sempre títulos fora de contexto, um Dan Brown entre o Paul Auster e o Don DeLillo, ou o Paulo Coelho escondido entre Saramago e Lobo Antunes. Mas há uma explicação lógica. Esses exemplares desenquadrados da restante biblioteca são sempre prendas de amigos em segundo grau, familiares distantes e colegas de trabalho. E nunca ninguém as rejeita, esconde, devolve. Porque, na maioria das vezes, são actos gratuitos de simpatia. Todos nós queremos ser dignos do melhor que as pessoas têm para oferecer. Mesmo daquelas que nos são estranhas.
Plano de um assassinato
© por Tiago R. Santos Todos os direitos reservados

INT. ESCRITÓRIO – LISBOA – TARDE

FILIPE, trinta e poucos anos com bom aspecto, está a tirar fotocópias. O seu olhar vai para alguém fora de cena. Filipe sorri, um movimento de lábios sacana, num jogo de ‘flirt'.
Páginas vão aparecendo no tabuleiro.
HUMBERTO, mais novo mas com algum excesso de peso, aproxima-se. Está a suar e olha para ambos os lados. Ambos estão vestidos com calças de fato, camisa e gravata.

HUMBERTO
Estou farto, meu.

Com muita calma, Filipe olha para o colega.

FILIPE
Estás farto do quê?

Humberto volta a olhar para os lados. Depois, tira uma pequena pistola no bolso e mostra-a a Filipe, que olha para ela, quase indiferente. Humberto volta a colocá-la no bolso, sempre a ver quem é que está à sua volta.

HUMBERTO
Vou matar o Gordo. Estou farto, porra.

A máquina continua a cuspir páginas.

FILIPE
Onde é que arranjaste isso?

HUMBERTO
Era do meu pai. Esteve na Guerra.

FILIPE
(volta ao seu jogo de flirt, sorri, não olha para Humberto)
Alguma vez disparaste uma coisa dessas?

Um segundo de silêncio.

HUMBERTO
Já.

Filipe olha para ele, sério.

HUMBERTO (CONT.)
Mais ou menos.

Filipe continua a olhar para ele.

HUMBERTO (CONT.)
Na Feira Popular, com uma espingarda de chumbo. Ganhei um urso de peluche azul.

Filipe olha para alguém que passa no seu lado esquerdo e acena-lhe com a cabeça.

FILIPE
Há uma maneira melhor de fazer a coisa.

HUMBERTO
Qual?

FILIPE
Convida-o para beber um copo.

HUMBERTO
Estou a falar a sério, caraças.

FILIPE
Eu sei.

Humberto olha para os lados.

HUMBERTO
(em voz baixa)
Veneno?

FILIPE
(abana a cabeça)
O que tens que fazer é convidar o gajo para beber um copo e pagar umas quantas rodadas. Torna-te amigo dele, ri-te das piadas, elogia-o. Diz-lhe que está mais magro. Tudo isto enquanto o embebedas.

HUMBERTO
(confuso)
E depois? Quanto sairmos do bar, dou-lhe uma pancada na cabeça. Vai parecer um assalto. É isso?

FILIPE
Nã, nã, nã. Não fazes mais nada. Deixas apenas que o gajo vá a guiar para casa. Ele nunca larga o novo BMW. E é assim que matamos pessoas em Portugal. Embebedamo-las e metemo-las ao volante. Fácil e limpinho. Claro que pode demorar tempo até o gajo se espetar. Podes ter que repetir o ritual durante meses, anos, tornar-te o melhor amigo dele, o padrinho dos putos do Gordo, talvez até férias conjuntas na República Dominicana. Mas sabes o que é que dizem sobre a paciência?

HUMBERTO
Sei, claro.

Filipe olha para Humberto, com um ar inquisidor.

HUMBERTO (CONT.)
Tu não estás bem, pá.

FILIPE
(olhar fixo)
Não sou eu que tenho a arma do meu papá no bolso do fato.

Humberto, envergonhado, volta para o seu lugar e deixa a cena.

O barulho da máquina pára. Filipe pega nas páginas que se encontram nos diferentes tabuleiros. Coloca-as numa pilha. Nessa altura, outra pessoa passa, agora pelo seu lado direito.

VOZ OFF
Copos logo à noite?

FILIPE
(sorri)
Claro, amigão. Levas tu o carro?


FIM
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