Uma semana
As coisas simples. Encarar o sol de olhos abertos até que as lágrimas escorram pelo rosto. Uma cadeira branca num tapete de relva, a ausência de automóveis e telefones, o calor que invade o corpo e o transforma, os braços quentes e a face corada, a invasão de energia e cor. Deixar que a cafeína corra pelas veias, sentir a inquietude dos pés que sapateiam em silêncio. Colocar um cigarro entre os lábios e, antes de o acender, acreditar que o cianeto de hidrogénio corrói os pulmões, que o benzeno irá destruir a garganta e as cordas vocais, que o alcatrão ajuda a tornar o coração um pouco mais negro. É quase uma reza, a crença na auto-destruição como meio de elevação pessoal. Devia chover em todos os dias de Inverno. As excepções são desonestas. Algumas pessoas não tem interesse em sentir. Nem todos querem fechar os olhos e ver um sorriso, um toque no pescoço, a expressão das costelas e a forma como se encaixam nos dedos de uma mão aberta. Apenas desejam ver escuridão, é nela que encontram descanso e paz. Os fantasmas podem significar segurança. Manuel não dorme há quatro dias. Quando regressa para dentro da claustrofobia das paredes brancas, manchas douradas dançam à sua volta. ‘Puta das fadas’. Entra na cozinha e bebe água num único fôlego, como se fosse coragem líquida.
Quando olhou para ela, tanto tempo depois, apenas pensou na estupidez dos anos. Não acredita na alteração das coisas, tudo é igual, um processo de repetição tão inútil como andar à volta na roda gigante da feira popular. Desejava ter uma aliança para o apoiar no discurso, se tivesse um anel poderia girá-lo no próprio dedo enquanto lhe falava de coisas sem interesse, o que tem feito, com quem, onde, porquê, o que pensa do futuro. Sente-se encurralado porque ela apenas vê fragilidade. Nervosismo. Embaraço. Manuel queria dizer-lhe quem era, que gosta de guiar com as janelas abertas mesmo quando chove, de sentir os cubos de gelo mergulhados em whisky a derreterem-se na sua mão e de tentar ler as legendas de filmes pornográficos codificados na televisão por cabo. Cobarde, apenas refere que teve saudades. Ela bebe água do copo que avaliou os seus lábios e inventa cumplicidade. Entram numa sala de cinema repleta e sentam-se isolados na primeira fila. Quando o mundo se encontra nas nossas costas, podemos fingir que não existe. Sorriem em diferentes piadas e os joelhos tocam-se. Mesmo os actos mais mundanos escondem promessas.
Se encararmos as coisas como inevitáveis, não precisamos de tomar decisões.
Quando a viu nua pela primeira vez e foi confrontado com a confiança da beleza pura, Manuel sentiu-se vazio. Como se Deus fizesse uma visita doméstica a um ateu, três toques secos numa porta branca de madeira para dizer ‘Quero provar que estás errado’. A luz de uma lanterna que aponta para o canto, recusando a intrometer-se numa estória que não lhe diz respeito, acrescenta uma áurea terrena, cria sombras e cantos e realidade. A ordem anárquica da roupa espalhada pelo chão, camisas em cima de calças, soutien e sapatos, encanta-o. Duas pessoas nunca estão tão unidas como no momento em que tentam distinguir aquilo que lhes pertence, juntas na descoberta de um lenço que procura refugio debaixo de uma almofada.
Se nos convencermos que não procuramos nada, é mais fácil viver com o facto de que nunca o vamos encontrar.
Percebe a santidade do toque, a leveza da pele, o cheiro que desconhece e nem por um momento se sente digno do acto. Podemos entrar nas nossas memórias. Ou decidir fugir delas. Aquilo que se julga perdido volta sempre mais forte, como uma figura de culto que se regenera a cada regresso mítico. Manuel tenta suster a respiração numa tentativa infantil de parar o momento, colocá-lo em pausa para melhor o apreciar, porque aquilo a que não temos direito dá-nos sempre mais prazer. Só mais tarde viria a sorrir, quando foi apanhado desprevenido pela convulsão orgásmica do corpo sem controlo, rijo, coberto de suor e saliva e honestidade.
Se não tivermos expectativas, é mais fácil agradecer por tudo.
Quando ela o olha e lhe segreda o próprio nome, o hálito quente estranho ao ouvido, um tom que Manuel desconhece, o sentimento é irreconhecível. Os corpos encaixam-se vazios de energia sexual, face ligada ao pescoço, um braço desce pelas costas, duas mãos apertam-se e perdem independência. O último beijo, os lábios já secos, os olhos cansados e drenados de energia. Só mais tarde, enquanto lavava os dentes, é que percebeu. Estava completo e desesperado. Reconhecer que poderia ser feliz tornava a sua própria existência numa fraude.
Se olharmos tempo suficiente para o nosso reflexo no espelho, se encostarmos a cintura ao balcão de mármore e inclinarmos o tronco para a frente até a respiração embaciar o vidro, conseguimos ver todos os nossos poros.
As coisas simples. Encarar o sol de olhos abertos até que as lágrimas escorram pelo rosto. Uma cadeira branca num tapete de relva, a ausência de automóveis e telefones, o calor que invade o corpo e o transforma, os braços quentes e a face corada, a invasão de energia e cor. Deixar que a cafeína corra pelas veias, sentir a inquietude dos pés que sapateiam em silêncio. Colocar um cigarro entre os lábios e, antes de o acender, acreditar que o cianeto de hidrogénio corrói os pulmões, que o benzeno irá destruir a garganta e as cordas vocais, que o alcatrão ajuda a tornar o coração um pouco mais negro. É quase uma reza, a crença na auto-destruição como meio de elevação pessoal. Devia chover em todos os dias de Inverno. As excepções são desonestas. Algumas pessoas não tem interesse em sentir. Nem todos querem fechar os olhos e ver um sorriso, um toque no pescoço, a expressão das costelas e a forma como se encaixam nos dedos de uma mão aberta. Apenas desejam ver escuridão, é nela que encontram descanso e paz. Os fantasmas podem significar segurança. Manuel não dorme há quatro dias. Quando regressa para dentro da claustrofobia das paredes brancas, manchas douradas dançam à sua volta. ‘Puta das fadas’. Entra na cozinha e bebe água num único fôlego, como se fosse coragem líquida.
Quando olhou para ela, tanto tempo depois, apenas pensou na estupidez dos anos. Não acredita na alteração das coisas, tudo é igual, um processo de repetição tão inútil como andar à volta na roda gigante da feira popular. Desejava ter uma aliança para o apoiar no discurso, se tivesse um anel poderia girá-lo no próprio dedo enquanto lhe falava de coisas sem interesse, o que tem feito, com quem, onde, porquê, o que pensa do futuro. Sente-se encurralado porque ela apenas vê fragilidade. Nervosismo. Embaraço. Manuel queria dizer-lhe quem era, que gosta de guiar com as janelas abertas mesmo quando chove, de sentir os cubos de gelo mergulhados em whisky a derreterem-se na sua mão e de tentar ler as legendas de filmes pornográficos codificados na televisão por cabo. Cobarde, apenas refere que teve saudades. Ela bebe água do copo que avaliou os seus lábios e inventa cumplicidade. Entram numa sala de cinema repleta e sentam-se isolados na primeira fila. Quando o mundo se encontra nas nossas costas, podemos fingir que não existe. Sorriem em diferentes piadas e os joelhos tocam-se. Mesmo os actos mais mundanos escondem promessas.
Se encararmos as coisas como inevitáveis, não precisamos de tomar decisões.
Quando a viu nua pela primeira vez e foi confrontado com a confiança da beleza pura, Manuel sentiu-se vazio. Como se Deus fizesse uma visita doméstica a um ateu, três toques secos numa porta branca de madeira para dizer ‘Quero provar que estás errado’. A luz de uma lanterna que aponta para o canto, recusando a intrometer-se numa estória que não lhe diz respeito, acrescenta uma áurea terrena, cria sombras e cantos e realidade. A ordem anárquica da roupa espalhada pelo chão, camisas em cima de calças, soutien e sapatos, encanta-o. Duas pessoas nunca estão tão unidas como no momento em que tentam distinguir aquilo que lhes pertence, juntas na descoberta de um lenço que procura refugio debaixo de uma almofada.
Se nos convencermos que não procuramos nada, é mais fácil viver com o facto de que nunca o vamos encontrar.
Percebe a santidade do toque, a leveza da pele, o cheiro que desconhece e nem por um momento se sente digno do acto. Podemos entrar nas nossas memórias. Ou decidir fugir delas. Aquilo que se julga perdido volta sempre mais forte, como uma figura de culto que se regenera a cada regresso mítico. Manuel tenta suster a respiração numa tentativa infantil de parar o momento, colocá-lo em pausa para melhor o apreciar, porque aquilo a que não temos direito dá-nos sempre mais prazer. Só mais tarde viria a sorrir, quando foi apanhado desprevenido pela convulsão orgásmica do corpo sem controlo, rijo, coberto de suor e saliva e honestidade.
Se não tivermos expectativas, é mais fácil agradecer por tudo.
Quando ela o olha e lhe segreda o próprio nome, o hálito quente estranho ao ouvido, um tom que Manuel desconhece, o sentimento é irreconhecível. Os corpos encaixam-se vazios de energia sexual, face ligada ao pescoço, um braço desce pelas costas, duas mãos apertam-se e perdem independência. O último beijo, os lábios já secos, os olhos cansados e drenados de energia. Só mais tarde, enquanto lavava os dentes, é que percebeu. Estava completo e desesperado. Reconhecer que poderia ser feliz tornava a sua própria existência numa fraude.
Se olharmos tempo suficiente para o nosso reflexo no espelho, se encostarmos a cintura ao balcão de mármore e inclinarmos o tronco para a frente até a respiração embaciar o vidro, conseguimos ver todos os nossos poros.