quarta-feira, janeiro 28, 2004

Uma semana

As coisas simples. Encarar o sol de olhos abertos até que as lágrimas escorram pelo rosto. Uma cadeira branca num tapete de relva, a ausência de automóveis e telefones, o calor que invade o corpo e o transforma, os braços quentes e a face corada, a invasão de energia e cor. Deixar que a cafeína corra pelas veias, sentir a inquietude dos pés que sapateiam em silêncio. Colocar um cigarro entre os lábios e, antes de o acender, acreditar que o cianeto de hidrogénio corrói os pulmões, que o benzeno irá destruir a garganta e as cordas vocais, que o alcatrão ajuda a tornar o coração um pouco mais negro. É quase uma reza, a crença na auto-destruição como meio de elevação pessoal. Devia chover em todos os dias de Inverno. As excepções são desonestas. Algumas pessoas não tem interesse em sentir. Nem todos querem fechar os olhos e ver um sorriso, um toque no pescoço, a expressão das costelas e a forma como se encaixam nos dedos de uma mão aberta. Apenas desejam ver escuridão, é nela que encontram descanso e paz. Os fantasmas podem significar segurança. Manuel não dorme há quatro dias. Quando regressa para dentro da claustrofobia das paredes brancas, manchas douradas dançam à sua volta. ‘Puta das fadas’. Entra na cozinha e bebe água num único fôlego, como se fosse coragem líquida.

Quando olhou para ela, tanto tempo depois, apenas pensou na estupidez dos anos. Não acredita na alteração das coisas, tudo é igual, um processo de repetição tão inútil como andar à volta na roda gigante da feira popular. Desejava ter uma aliança para o apoiar no discurso, se tivesse um anel poderia girá-lo no próprio dedo enquanto lhe falava de coisas sem interesse, o que tem feito, com quem, onde, porquê, o que pensa do futuro. Sente-se encurralado porque ela apenas vê fragilidade. Nervosismo. Embaraço. Manuel queria dizer-lhe quem era, que gosta de guiar com as janelas abertas mesmo quando chove, de sentir os cubos de gelo mergulhados em whisky a derreterem-se na sua mão e de tentar ler as legendas de filmes pornográficos codificados na televisão por cabo. Cobarde, apenas refere que teve saudades. Ela bebe água do copo que avaliou os seus lábios e inventa cumplicidade. Entram numa sala de cinema repleta e sentam-se isolados na primeira fila. Quando o mundo se encontra nas nossas costas, podemos fingir que não existe. Sorriem em diferentes piadas e os joelhos tocam-se. Mesmo os actos mais mundanos escondem promessas.

Se encararmos as coisas como inevitáveis, não precisamos de tomar decisões.
Quando a viu nua pela primeira vez e foi confrontado com a confiança da beleza pura, Manuel sentiu-se vazio. Como se Deus fizesse uma visita doméstica a um ateu, três toques secos numa porta branca de madeira para dizer ‘Quero provar que estás errado’. A luz de uma lanterna que aponta para o canto, recusando a intrometer-se numa estória que não lhe diz respeito, acrescenta uma áurea terrena, cria sombras e cantos e realidade. A ordem anárquica da roupa espalhada pelo chão, camisas em cima de calças, soutien e sapatos, encanta-o. Duas pessoas nunca estão tão unidas como no momento em que tentam distinguir aquilo que lhes pertence, juntas na descoberta de um lenço que procura refugio debaixo de uma almofada.
Se nos convencermos que não procuramos nada, é mais fácil viver com o facto de que nunca o vamos encontrar.
Percebe a santidade do toque, a leveza da pele, o cheiro que desconhece e nem por um momento se sente digno do acto. Podemos entrar nas nossas memórias. Ou decidir fugir delas. Aquilo que se julga perdido volta sempre mais forte, como uma figura de culto que se regenera a cada regresso mítico. Manuel tenta suster a respiração numa tentativa infantil de parar o momento, colocá-lo em pausa para melhor o apreciar, porque aquilo a que não temos direito dá-nos sempre mais prazer. Só mais tarde viria a sorrir, quando foi apanhado desprevenido pela convulsão orgásmica do corpo sem controlo, rijo, coberto de suor e saliva e honestidade.
Se não tivermos expectativas, é mais fácil agradecer por tudo.
Quando ela o olha e lhe segreda o próprio nome, o hálito quente estranho ao ouvido, um tom que Manuel desconhece, o sentimento é irreconhecível. Os corpos encaixam-se vazios de energia sexual, face ligada ao pescoço, um braço desce pelas costas, duas mãos apertam-se e perdem independência. O último beijo, os lábios já secos, os olhos cansados e drenados de energia. Só mais tarde, enquanto lavava os dentes, é que percebeu. Estava completo e desesperado. Reconhecer que poderia ser feliz tornava a sua própria existência numa fraude.
Se olharmos tempo suficiente para o nosso reflexo no espelho, se encostarmos a cintura ao balcão de mármore e inclinarmos o tronco para a frente até a respiração embaciar o vidro, conseguimos ver todos os nossos poros.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

I wish I was a fucking fisherman

A primeira coisa em que penso é na harmonia, como se todo o gesto fosse ensaiado. Depois disciplina, o respeito pelas regras, a conformidade do vestuário. Todos são parte da mesma alma, um sentimento religioso, o primeiro é irmão gémeo do segundo de dedos entrelaçados com o terceiro que sorri para o quarto. Luzes, brilho, cores, um dia artificial mais bonito do que a realidade. A imagem pára por momentos, dentes brancos e perpétuos, estrelas que centelham coladas a braços bronzeados, pêlos loiros que ondulam em vagas descendentes e desaguam em mãos delicadas. Estas são as pessoas cuja vida se resume a este momento.

Olho e imagino-a. Vejo uma morena que pede um gin tónico enquanto se encosta ao bar de madeira - pé suspenso no ar, calcanhar desnudo, sapato a balancear - e sei que ela apaga no prato da sobremesa o cigarro que sempre fuma depois do jantar, fica na sala de cinema até o genérico terminar e não responde a chamadas no telemóvel de números não identificados. Cedo se tornará numa personagem de um livro, imortal pelas minhas palavras, mesmo que não o saiba. O meu amigo Bill, também ele escravo das letras, acredita que os escritores devem ser foragidos da justiça, um perigo para governos e sociedade. ‘Se não recebes ameaças de morte, estás a fazer alguma coisa de errado. Um fatwa é a tua melhor crítica.’ Mas nunca consigo desmascarar aqueles por quem estou apaixonado. Sou um escravo da ilusão.

Tenho um jogo preferido. Quando vou a um bar, peço cinco shots de whisky. Coloco-os em fila. Para cada um que bebo, imagino uma profissão diferente. O que eu queria é querer ser um pescador.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Não era engraçado se o amor existisse?

O telefone nunca toca quando olhamos para ele. Se a nossa atenção não se desviar do relógio, os ponteiros congelam. Existe quem use os seus pecados como um vestido de Domingo, convencidos que o sol ofusca todos os defeitos. Quando vistas em pormenor, todas as coisas perdem o sentido. A realidade é um ponto de vista, o amor menos que uma ilusão, apenas um truque de magia barato. Os homens vestidos em fatos azuis escuros já não enganam ninguém, estão esgotados de humanidade. Ninguém tem tantos amigos que precise de dois telemóveis.

Antes, uma noite, Filipa levantou-se e caminhou até à sala. Passava das quatro da manhã e o silêncio entupia-lhe os ouvidos. Abriu a porta da rua o máximo que conseguia, até a frecha encaixar no tapete, pegou na televisão e desceu as escadas. Saiu do prédio, virou à direita e caminhou mais de 100 metros até encontrar um sem abrigo que dormia encostado a uma janela espelhada da Caixa Geral de Depósitos. Devagar, naquele silêncio que tanto a incomodava, colocou o aparelho ao lado do estranho homem por quem passava todos os dias. Filipa apertou o roupão quando confrontada pelo vento, olhou para ambos os lados e voltou para casa. Se alguém a tivesse visto, saberia que nunca esteve tão bonita. Existiu algo de inexplicável no movimento absurdo e anárquico dos seus cabelos negros, a revolta tornou-a mais mulher.

Quando as crianças fugiam da escola, no intervalo para o almoço, e olhavam para a quinta janela do lado direito a contar de baixo, encontravam-na sempre. Filipa agora via o mundo como o seu ‘reality show’ pessoal, aprendeu a reconhecer as pessoas que passavam numa indiferença fingida ao seu olhar. A mulher do saco de plástico verde, o encarregado de limpeza que varria a rua num gesto mecânico e inútil, como se não tivesse alma. Por muito que chova, a sujidade permanece, a água depressa se converte e transforma em lama. Os jogos de futebol no campo de cimento, a procura do cansaço como se fosse uma forma de absolvição. Havia também o casal de namorados, beijos à porta da escola, dedos entrelaçados, a angústia da separação, mesmo que tenha apenas a duração de uma aula de matemática. Todos temos as nossas personagens preferidas, e estes encantavam Filipa. Observava-os e puxava do seu único cigarro do dia. Acendia a chama do isqueiro, inspirava fundo, preparada para encher os pulmões de alcatrão, e pensava.

Não era engraçado se o amor existisse?

quarta-feira, janeiro 14, 2004

A minha ideia de fé

Em episódios antigos do 'Clube dos Amigos Disney', era referido com alguma frequência que as Quartas-feiras são um dia especial. Ainda acredito nisso. Tudo pode acontecer a uma Quarta-feira.

terça-feira, janeiro 13, 2004

Levanta-te e chora O

Uma crítica em forma de homenagem à comédia portuguesa.

Olá, boa tarde. Antes de começar, quero agradecer-lhes a vossa presença. Tenho imenso gosto em estar neste blog, perante vocês, as quatro pessoas que o visitam com regularidade. Não sei bem como é que vieram cá parar, cá por mim confundiram a terrível verdade com a temível vagina, um ‘site’ porno que até acho muito interessante e educativo, tem uma secção dedicada ao ‘fistfucking’ que deveria aparecer tanto em compêndios médicos como no Guiness Book of Records. E por falar em práticas sexuais duvidosas, estava eu em casa ontem à noite quando liguei a televisão. Agora perguntam vocês, mas ò Tiago, porque é que foste ligar a televisão numa segunda feira quando toda a gente sabe que não dá nada de jeito? Ou tens o descodificador dos canais porno? Não, não tenho, o meu pai só assinou a Sport TV e, confesso, estou farto de bater punhetas enquanto assisto aos golos do Sporting. Decidi então ver o Levanta-te e Ri, um programa de comédia da SIC na tradição gloriosa de clássicos como os ‘Malucos do Riso’ ou, quem é que se poderá alguma vez esquecer, ‘O Clube dos Campeões’. Descobri que existem dois tipos de ‘Stand Up Comics’; os que se esforçam e os muito maus. Estes últimos são os mais irritantes, adoptam um sotaque idiota para contarem anedotas mais antigas do que a última vez que o Benfica foi campeão, filhos da velha e medíocre revista portuguesa. (Sinceramente, não me interessa o que querem fazer do Parque Mayer, desde que todos os Diogos Morgados e aquela bola com olhos que apresenta o Preço Certo sejam detidos e enviados para a Madeira. Porquê a Madeira, perguntam? Porque acho que devíamos fazer da ilha o Alcatraz Português, exilar todos os maus actores, jogadores de futebol e o Herman José. Pensem bem, já lá está o Alberto João Jardim. Querem melhor começo?). Mas onde é que eu ia? Ah, ok. Os muito maus não têm um traço de originalidade, são fotocópias um dos outros apesar de alguns serem gordos, outros usarem óculos e os mais arrojados deixarem crescer a barba. A sua imagem de marca é o ‘punchline’ sempre acompanhado com uma careta, ao melhor estilo cómico mexicano. Só falta a frase ‘Ai a minha vida!’ e levar as duas mãos à cara ao mesmo tempo que sustêm a respiração e as bochechas incham. Um clássico! Os que se esforçam são melhores, vê-se que tentam ter material novo, aquele estilo Seinfeld de utilizar coisas do dia-a-dia, a desconstrução do ridículo da realidade actual. O que falta é confiança. Mas deixem-me voltar atrás. Há muitos anos, antes de a minha avó se tornar senil e começar a acreditar que Portugal era um país com potencialidades, ela chamou-me para perto da lareira, olhou para mim e disse; ‘Tiago, meu netinho, quero que saibas uma coisa. Há uma fortuna a ser feita em anedotas de peidos, piças e palavrões. Lembra-te disso. São os três P’s da comédia portuguesa’. Pois bem, ela tinha razão. O problema é que o segredo foi divulgado, tornou-se senso comum e todos sabem que, para fazer a audiência, qualquer audiência em Portugal, sorrir, basta dizer ‘peidei-me’ ou ‘vai levar no cú’. E é a esse truque fácil, à piada escatológica importada do pior humor americano que estes ‘comediantes’ tanto parecem admirar, que a maioria - sejam os que se esforçam ou os muito maus – recorre. Mas se para os últimos é apenas natural, não sabem ou não querem mais, para os primeiros é cobardia e falta de convicção no tipo de humor que lhes interessa. E se é das influências dos Estados Unidos de que falamos, recomendo a todos aqueles interessados em comédia inteligente a verem um episódio que seja do ‘Daily Show’, com o Jon Stewart, a estudarem os segmentos com o Rob Corddry ou o Stephen Colbert. O programa é transmitido na SIC Radical, casa da contra-cultura ‘mainstream’ portuguesa. Para os que preferem o humor britânico pós-Monty Phyton, prestem atenção ao ‘The Office’. Agora perguntem-me, mas ò Tiago, não achas que estás querer demais? Por amor de Deus, olha para as nossas telenovelas! Olha para a lista da FNAC dos livros mais vendidos! Talvez tenham razão, mas como a minha avó me dizia, ‘Que tenhas sempre como referência o inatingível. Como o Fininho.’ E ele raramente se peidava. Obrigado e voltem sempre. Vou estar aqui toda a semana.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

Domingo

Levantar-me cedo. Preparar o pequeno almoço antes de acordar os miúdos. Cereais, leite, sumo de laranja acabado de espremer, torradas para o João, um pedaço de fruta para mim. O fato escuro de Domingo embrulhado em plástico, todas as nódoas são removíveis na limpeza a seco. Preparar o banho, a antecipação de gritos e risos, o entusiasmo do fim de semana, correrias, demasiada energia. Café. Beijos de bom dia, responder a perguntas, ‘sim, vamos lá. Hoje é Domingo. Não sabes que vamos lá sempre ao Domingo?’ A televisão que se liga, volume demasiado alto, explosões pela manhã. O João sai para comprar tabaco, o jornal e pão quente. As crianças entram na banheira e brincam com o champô, cabelos espetados, água que se espalha, a minha memória diverte-se com a estória de uma mulher nos Estados Unidos que afogou os seis filhos porque já não os conseguia ouvir. Toalhas encharcam-se, pés molhados pela casa, alguém morre no ecrã mas é apenas a brincar. Penteado com o risco ao lado, hoje têm que estar bonitos, os sapatos brilhantes, a camisa bem engomada, dentes lavados. A porta abra-se, ‘estamos atrasados, temos que nos despachar, sabes como detesto chegar tarde.’ Fumo um cigarro escondida na casa de banho enquanto folheio uma revista, sorrisos, sapatos, vestidos de dor, plástico, escadas, sofás, luzes, inteligência artificial que desprezo porque não sou eu. Reparo que os dias agora me parecem sempre cinzentos, talvez o sol tenha perdido a sua cor e ainda ninguém reparou. ‘Vamos’. Sapatos altos, saia escura pelo joelho, a limpeza a seco pode remover todas as nódoas, mas o preto esconde-as e eu não gosto que as minhas manchas desapareçam, prefiro viver com elas, nunca se sabe quando é que vou ter oportunidade para as revelar. ‘Estou pronta’, corre-se pelas escadas, ‘cuidado’, quatro portas de um carro batem simultaneamente, rádio ligado, notícias, mais pessoas que morrem mas é longe, não existe. Trânsito, dificuldade em estacionar, ‘venha, venha, pode ir’, 50 cêntimos entre dedos, ‘sacanas’. Chegámos, estamos aqui. Sofremos a semana toda para chegar. Saúde espiritual. Descanso, sinto que pertenço. As portas abrem-se e invade-me uma luz branca, um ruído silencioso, uma sensação de fé. Rodeada de centenas como eu, irmãos e irmãs, cartão de crédito na mão, a minha única dúvida é por que loja começar. Estou pronta para melhorar o meu crédito existencial. Sou o que compro. O Centro Comercial é o meu templo.

P.S. - Inspirado em 'White Noise', de Don Delillo
/body>