quarta-feira, maio 24, 2006

Dicas úteis

Para aqueles que, ignorando os meus conselhos, querem escrever cinema/televisão, aqui ficam alguns links que podem ser utéis.

artfulwriter.com
www.johnaugust.com
www.hucksblog.blogspot.com
kenlevine.blogspot.com
Na terça feira, acabei, junto com dois outros guionistas/amigos, o episódio piloto para uma série de televisão.

E a questão continua a ser a mesma.

Será que está alguma coisa de jeito? (eu espero que sim)

É um bom momento para falar da profissão de Guionista em Portugal. Para quem está interessado em escrever filmes/séries no nosso país (não novelas, isso é outra estória), dois conselhos.

Nem pensem nisso, porque eu não preciso da concorrência.

Nem pensem nisso, porque nunca, nunca, será um trabalho que vos irá garantir uma vida com um mínimo de estabilidade.

Escrever cinema em Portugal é um acto de paixão, um investimento numa estória, é necessário que sejas alguém que está disponível para estar sozinho em frente a um computador durante um mês sem receber dinheiro ou qualquer tipo de reconhecimento, ignorando amigos, namorada, família, que nunca percebem bem o trabalho que estás a fazer.

Sim, é assim tão mau. Se quiseres ser rico ou famoso, estás na profissão errada. Aqui joga-se pelo amor à camisola.

P.S. Não, os actores não inventam os seus diálogos. Eles foram escritos antes.

segunda-feira, maio 15, 2006

No Sábado, acabei a primeira versão de um guião.

No Domingo, imprimi o texto pela primeira vez. A minha namorada folheou-o. Riu-se em algumas passagens. Eu, que fingia estar distraído, perguntei de imediato em que cena é que ela estava.

É conhecida a angústia do escritor. A página de word em branco, o cursor a piscar, e aquela voz na tua cabeça que diz, vezes e vezes sem conta, 'sê criativo! Inventa algo brilhante!'. Mas com isso lido bem. Sou óptimo a ignorar a minha consciência. O meu problema é outro.

Porque é segunda-feira. E continuo a não fazer ideia se o guião está alguma coisa de jeito.

sábado, maio 13, 2006

Fuck The DaVinci Code

O Book Review do New York Times convidou algumas centenas de críticos, escritores, editores e conhecedores (incluindo Mario Vargas Llosa, Ian McEwan, Stephen King ou Michael Cunningham) a indicarem qual a melhor obra de ficção americanos dos últimos 25 anos. Aqui fica a lista de vencedores e partilho o estúpido e infantil orgulho em constatar que Don DeLillo, o meu escritor americano preferido, tem três livros na lista. Talvez seja tempo de as editoras portuguesas começarem a traduzir alguns dos seus títulos, pelo menos o Underworld, obra absolutamente épica e visionária.

O VENCEDOR:
Beloved
Toni Morrison (1987)

LUGARES DE HONRA:
Underworld
Don DeLillo
(1997)

Blood Meridian
Cormac McCarthy
(1985)

Rabbit Angstrom: The Four Novels
John Updike
(1995)

American Pastoral
Philip Roth
(1997)

OS RESTANTES LIVROS TAMBÉM RECEBERAM MÚLTIPLOS VOTOS
A Confederacy of Dunces
John Kennedy Toole
(1980)

Housekeeping
Marilynne Robinson
(1980)

Winter's Tale
Mark Helprin
(1983)

White Noise
Don DeLillo
(1985)

The Counterlife
Philip Roth
(1986)

Libra
Don DeLillo
(1988)

Where I'm Calling From
Raymond Carver
(1988)

The Things They Carried
Tim O'Brien
(1990)

Mating
Norman Rush
(1991)

Jesus' Son
Denis Johnson
(1992)

Operation Shylock
Philip Roth
(1993)

Independence Day
Richard Ford
(1995)

Sabbath's Theater
Philip Roth
(1995)

Border Trilogy
Cormac McCarthy
(1999)

The Human Stain
Philip Roth
(2000)

The Known World
Edward P. Jones
(2003)

The Plot Against America
Philip Roth
(2004)

quinta-feira, maio 11, 2006

Outra curta que nunca será feita
BOM DIA, PORTUGAL, por Tiago R. Santos
© por Tiago R. Santos. Todos os direitos reservados

INT. ESTÚDIO TELEVISÃO – LISBOA – MADRUGADA

JOÃO
Bom dia, Portugal. Eu sou o João Andrade, são sete da manhã, e não acredito que já estou acordado.

Há um segundo de silêncio, tempo morto no ar. JOÃO, trinta e dois anos, de quem vemos apenas o tronco, está de fato e gravata, bom aspecto, bem penteado. À sua frente estão várias folhas de papel. É mais uma edição de um programa de informação e a posição da câmara é rígida e inamovível.

Por um segundo, o olhar de João vai para alguém que está fora de câmara.

JOÃO (CONT.)
O que foi?

João olha para as páginas que estão à sua frente.

JOÃO (CONT.)
(seco e sarcástico)
Está bem, eu leio as notícias.
(pega nas folhas)
Vamos lá ver. Incêndios, o trânsito está uma merda e a IC19 parece um enorme parque de estacionamento, o Sporting perdeu - grande surpresa aqui- , insucesso escolar, Homem do Piano e Ferreira Torres. Portugal é como a terra onde o tempo parou. Todos os dias são iguais.

Novo tempo morto no ar, ninguém diz uma palavra.

JOÃO (CONT.)
(olha para alguém fora do enquadramento)
Porque é que estás a olhar para mim dessa maneira, pá? Hã, André? Mas quem é que acorda às sete da manhã para ver televisão? Sabes a que horas é que eu me levanto? Cinco e trinta. Cinco e trinta, meu. Nem sequer sabia que essa hora existia. E hoje levanto-me e ela não está lá. Isto é que são notícias em exclusivo. Cabra.

O plano da câmara continua fixo e João olha agora directamente para o espectador.

JOÃO (CONT.)
Deixem-me que vos diga uma coisa. As pessoas fecham sempre os olhos um segundo antes de um acidente. É instinto. Mas, com as mulheres, é diferente. Estamos ali, de olhos bem abertos, a pensar em nomes para o cão que lhe vamos oferecer no dia de aniversário, estava a pensar em Winston, e de repente--
(olha de novo para fora do enquadramento)
Eu não entendo. Olhem para mim. Eu sou sexy. Não sou sexy? André?

Novo segundo desconfortável de tempo morto.

JOÃO (CONT.)
André?

E mais um segundo de tempo morto.

ANDRÉ (O.S.)
És sexy, João, claro que és.

JOÃO
Achas mesmo?

Nova pausa.

ANDRÉ (O.S.)
Sim.

JOÃO
(olha de novo para o espectador, orgulhoso)
Nem mais. Mas eu não preciso de ti. Não preciso de ninguém. Eu até me rio das minhas próprias piadas.
(um segundo a olhar fixamente para a câmara)
Sabem o que é que eu não percebo? Quando é que os futebolistas se tornaram os ‘sex symbols’ das mulheres? Quando é que isto aconteceu? Quando é que aqueles broncos com a quarta classe começaram a sacar todas as gajas boas? Alguém me consegue explicar? Alguém me consegue explicar como é que a minha Inês me deixou pelo defesa esquerdo do Olivais e Moscavide?

João pára por um segundo, como se percebesse que está a perder o controlo. Respira fundo, pega nas folhas, olha para a câmara e sorri. Parece melhor, mais aliviado. Mas, de repente, envia as folhas pelo ar e levanta-se, é a primeira vez que o seu corpo se mostra por completo, revelando que está sem calças, apenas de boxers e meias pretas.

JOÃO
Que se lixe esta merda.

O FUNDO DO ECRÃ FICA NEGRO POR TRÊS SEGUNDOS COM UMA FRASE A BRANCO – “DIFICULDADES TÉCNICAS. DESCULPE O INCÓMODO”

INT. ESTÚDIO TELEVISÃO – LISBOA – MADRUGADA

O cenário é exactamente o mesmo mas, no lugar do João, está agora ANDREIA, uma jovem e bonita jornalista.

ANDREIA
Bom dia, Portugal. O meu nome é Andreia Sanches. São sete e quatro da manhã.
(uma pausa)
Em notícia exclusiva, o jornalista João Andrade tem colapso mental em directo. Não perca, já a seguir. Mas primeiro, o trânsito.

quinta-feira, maio 04, 2006

Concrete - A Short Screenplay by Tiago R. Santos (c) all rights reserved

EXT. NEW YORK STREET – DAWN

It’s the end of a long night. LEO, a guy in his late twenties, walks alone. He returns home after several hours of drinking and dancing.

If the New York streets could ever be quiet for a minute, this would be it. There’s a sense of serenity.

Leo stops and lights a cigarette. His pack, kept in his pocket, is crushed and it’s a miracle the cigarettes survived. This particular one makes a swerve to the right.

Then, out of nothing, SAM runs pass him. Sam is a guy in his thirties, dressed in black. He seems to be running randomly, in no particular direction.

LEO
Hey!

Sam keeps running.

LEO
Hey! Sammy!

Sam stops and looks back.

SAM
Jesus, Leo?

LEO
Sammy! What—

Sam runs back in Leo’s direction. They hand-shake.

LEO
How the hell are you? It’s been--

SAM
I’m good, Leo-—

LEO
What are you doing running around? You’re in a hurry?

SAM
Oh, you know. Where are you going Leo?

LEO
It’s seven o’clock in the morning, man. I’m going home.

SAM
Can I walk with you Leo?

LEO
I-- Sure.

They both start walking.

SAM
Hey, Leo, do you have a cigarette?

Leo gives Sam a cigarette. This one goes upwards, like an arrow pointing toward the stars.

LEO
How have you been man? I haven’t seen you since—

Leo seems worried for a brief moment.

SAM
Yeah, since them hum, Leo?

LEO
Are you alright? I mean-- better?

Sam jumps, a sudden movement. Leo is startled.

SAM
Oh man, you know what? Leo, I wanna show you something!

LEO
What? Hey, it’s nice to see you and all but my ass is going home.

SAM
It’s right there. It’s gonna blow you away, I swear to God. It’s right there Leo!

Sam grabs Leo’s arm and drags him to a sidewalk. He points to a perfectly normal square of concrete, nothing different about it.

SAM
What to you think Leo?

LEO
What do I think about what?

SAM
Leo, you haven’t even looked at it.

LEO
Looked at what? It’s the fucking sidewalk! It’s pavement! Sammy, are you sure you’re okay?

Sam insists. He points to the piece of sidewalk again. Leo looks at it.

LEO (CONT'D)
I don’t know what the fuck you saying.

SAM
This is between me and you Leo. I don’t want people to know. Let’s not create a tourist attraction here, all right? This is ours. Newyorkers only.

Sam gets on his knees.

LEO
What--

Sam lies down. His head is perfectly framed in that grey square. Sam pushes his ear against the sidewalk.

LEO
It’s been almost two years, Sam. You’re still fucking crazy. You have to let it go man. Jesus Christ. What the fuck--

SAM
I can’t explain it Leo. I don’t want to, either. But lean your head, let your ear touch the street, and New York will speak to you. It has to be right here. This spot. I tried in other places, other sidewalk squares, but it never worked. It’s here.

Sam closes his eyes and smiles.

SAM (CONT’D)
The birds in Central Park. Cab drivers talking on the cell phone. Store managers releasing the gates on Madison Avenue. Drunks returning home, mumbling. A baby girl waking up with a good cry at 108 East, 97th street, apartment 5E. A boy confessing his eternal love to a girl. Smokers inhaling, Pakistani Deli workers spraying water on roses, the sighs of those who fall asleep crying. It’s all here, man. It’s all here.

Sam gets up. Leo just looks at him. Sam starts running again.

SAM
Right. Have to go Leo.

LEO
Where--

SAM
Two Swedish students trying to get around the subway lines. A job for yours truly, Leo.

LEO
You crazy--

Sam runs off and disappears in a corner. Leo looks down at the sidewalk. Then, slowly, he starts to get down. First, he puts his knees on the concrete. Then, always slowly, he places his hands in the ground and lowers his head. His ear touches the sidewalk.

Leo stands there for a couple of seconds. He looks rather stupid, in all fours with his ear leaned against the sidewalk.

Leo smiles.

LEO
Motherfucker.
Façam lá o jeitinho. Por favor?

Há uma semana que remodelei a Terrível Verdade. Não sei se já repararam, mas no final de cada texto (ou post, como quiserem), existe agora uma pequena caixa de comentários. Como o perfeito narcisista que sou (condição clinicamente provada), fiquei entusiasmado com a perspectiva de ter um feedback imediato de cada visitante. Nada. Nem um. Eu sei que o senhor que 'googlou' 'imagens de pessoas mutiladas', e foi encaminhado para este site, deve ter ficado decepcionado. Pois bem, essas caixas são a possibilidade de expressar a sua raiva. O mesmo acontece com os utilizadores que procuravam

'Prostituição no Conde Redondo'
'Influência do Red Bull no Desempenho sexual'
'Estacionamento no Intendente'
'Clube Amigos Disney Madeira'
'Extensões de Cabelo Mary qualquer-coisa'

Claro que já percebi que a maioria das pessoas que passa pelo Terrível Verdade, fazem-no por engano absoluto. Acreditem que eu não sei nada sobre o Clube Amigos Disney Madeira. Mas vamos tornar estes infelizes equívocos num agradável encontro entre estranhos. Leiam um texto, não demora nada, e digam-me a vossa opinião. Mesmo que o considerem terrível (especialmente nestes casos). Usem as pobres caixas de comentários, neste momento condenadas a uma vida de esquecimento e frustração. O primeiro visitante que o fizer, ganha um conjunto de facas de cozinha.

P.S. E, por favor, deixem de fazer buscas por 'imagens de pessoas mutiladas', a não ser que trabalhem numa morgue a reconstruir e embalsamar cadáveres, como o Rico no 'Six Feet Under'. Se é o caso, as minhas desculpas. É um emprego desagradável, mas alguém tem que o fazer. Se é algo que fazem por diversão, bem, o melhor é respirarem fundo sempre que tiverem o impulso, desligarem a Internet e irem para a rua apanhar sol. Não há desculpa que justifique uma vida de palidez.

quarta-feira, maio 03, 2006

Dois homens revoltados

A: E... o que é que eu estava a dizer?
B: ...televisão...
A: Ah, certo.
B: ...o telejornal...
A:... era apresentado por aquele gajo...
B: ...já sei, aquele tipo...
A:... aquele gajo que também...
B:... eu até gosto desse tipo, acho que ele...
A:... sim, mas aparece uma notícia...
B:... é bom e até os livros...
A:... no telejornal, onde eu espero objectividade...
B:... e outras coisas...
A:... a notícia dizia que um filme tinha ganho um festival....
B: ...aquele com o míudo...
A:... e o gajo diz isso, como se não fosse nada com ele...
B:... não o vi, mas disseram-me coisas boas...
A:... o que é uma vergonha, pá...
B:...porque foi ele que o escreveu...
A:... um gajo pensa que está a ver o telejornal....
B:...tens razão...
A:...e depois percebe que está a ver pornografia...
B:... é importante as pessoas saberem...
A:...estou convencido que vou aprender um pouco sobre a situação em Darfur...
B:...é errado....
A: ...e apanho com um gajo a chupar o seu próprio pénis...
B:... é isso que está errado em Portugal...
A:...é como a história do velho governante...
B:...porque ninguém diz nada...
A:... que se recusa a sair do seu posto....
B:...as pessoas não querem saber...
A:...eu nem tenho nada contra os velhos....
B:...estão sem forças...
A:...até gosto do cheiro deles...
B:...mas isto tem que mudar...
A:...e das pausas que fazem enquanto falam...
B:...temos que fazer alguma coisa...
A:... mas sou contra a perpectuação dos cargos públicos....
B:...perpectuação é uma palavra?
A:...e olhas para os jornais...
B: ...para as colunas de opinião...
A:...e vês os amigos do gajo...
B:...os mesmos que ele protege...
A:...a dizerem que o homem é essencial e que não há ninguém...
B:...como é que pode haver alguém....
A:...na nova geração....
B:...se são sempre os mesmos?
(um segundo de silêncio)
B: Mas não é assim em todo o lado?
A: Talvez seja. Mas eu não vivo em todo o lado. Apenas neste buraco. E só há duas maneiras de viver. Tentar subir as paredes ou continuar a escavar para baixo.

sexta-feira, abril 28, 2006

Conversa Banal Sobre Nada

A: Não me digas isso que eu...
B: ...eu... desculpa... mas...
A: O que é que estás a fazer?
B: Não sei.
A: Quem é que te dá o direito...
B:... não quis...
A:... de chegar aqui, assim...
B:...acho que pensei...
A:... e... quem é que pensas que...?
(um segundo de silêncio)
B: ...que ias gostar...
A: O que?
B: Acho que pensei que ias gostar.
(novo segundo de silêncio)
A: Não sabes que...
B: Não, eu sei. Mas...
A: ... que é impossível?
B: ... mas apesar de ser impossível...
A: O que é que estás a fazer? Mas o que é que pensas que estás a fazer? Isto não faz sentido nenhum.
B: Faz. É esse o problema, faz todo o sentido. Por isso é que tentei...
A: Que sentido?
B:... falar contigo...
A: Agora, assim?
B:...para te dizer...
A: Não sabes que...
B:... que...
A:... que eu não quero ouvir isso?
(novo segundo de silêncio)
B: Li numa revista que devemos ser honestos com... que devemos ouvir o... o nosso coração.
A: Pois, então talvez seja boa ideia deixares de ler revistas de merda.

quinta-feira, abril 27, 2006

Guerrilheiros Urbanos

O: E tabaco? Tens fumado?
U: Dois maços por dia.
O: Bom. Bom. Dois maços por dia é bom.
U: Ando a tentar subir para três, mas fico com a garganta toda lixada.
O: Dois já não é mau.
U: Acho que, se conseguir chegar a três, vou acabar por ficar com a boca dormente.
O: Isso era óptimo.
U: Era fantástico. A partir daí, podia fumar quatro, cinco maços, à vontade.
O: Se tiveres força de vontade...
U: Estou a tentar, pá. Já nem sinto os dentes, sabes? Quando passo com a língua por eles, parecem estradas de alcatrão.
O: Óptimo, óptimo. E quanto à dieta?
U: O costume. Abusar do sal, da gordura e dos fritos. Tenho as veias completamente entupidas.
O: Desde que te conheci pá, sempre soube que eras o que ia mais longe. Que não eras como os outros gajos.
U: E tenho passado os dias ao sol, sem protector solar. A pele caiu-me três vezes numa semana.
O: Eu reparei. Estás bronzeado.
U: E pronto, é isso.
O: Não quero ser demasiado optimista mas, se continuares assim, acho que em menos de um ano...
U: Achas mesmo?
O: Se tudo correr bem, não vejo porque não.
U: Isso era...
O: ...fantástico...
U: Nunca pensei que...
O: Sempre foste o mais decidido...
U: Nem imaginas o quanto...
O: Só tens razões para estar orgulhoso...
U: ...isto é importante para mim...
O: ...para nós...
(um segundo de silêncio)
U: Achas que as pessoas vão perceber?
O: Talvez não agora. É muito cedo para elas. Mas em breve.

quinta-feira, abril 20, 2006

It's been a long time, baby

A: Há muito tempo.
O: Pois, eu sei.
A: O que é que tens feito?
O: Isto e aquilo.
A: Isto e aquilo?
O: Sim.
A: Consegues ser mais específico?
O: (encolhe os ombros) Tu sabes.
A: Não, não sei.
O: Tenho escrito.
A: O quê?
O: Coisas.
A: Coisas?
O: Sim.
A: Que tipo de coisas?
O: Sei lá. Poemas.
A: Poemas?
O: Sim.
A: Tens escrito poemas?
O: Sim, tenho.
A: Não achas que poemas são muito século XIX?
O: Achas?
A: Diz-me um.
O: O quê?
A: Diz-me um poema, desses que tens escrito.
O: Agora?
A: Sim.
O: Os poemas não se dizem assim, sem mais nem menos. Recitam-se poemas, não se dizem poemas. Percebes a diferença?
A: Ok, então recita-me um poema.
O: Agora?
A: Sim.
O: "As bombas caem do céu, cobertas pela impunidade dos Deuses..."
A: "As bombas caem do céu, cobertas pela impunidade dos Deuses..."?
O: Sim.
A: É este o teu poema?
O:Ainda há mais. "Homens sem casa, que ganham a vida com copos de papel vazios mas continuam sem comer, porque aprenderam que é possível sobreviver apenas com oxigénio e whiskey".
A: Qual é a diferença?
O: Diferença?
A: Sim. Qual é a diferença entre recitar e dizer um poema?
O: Não sei.
A: Fantástico.
O: É assim tão importante?
A: É. É assim tão importante.
O: Porquê?
A: Porque não te via há mais de seis meses. E tudo o que tens para me mostrar é um poema que nem sequer sabes recitar.
O: Eu gosto do meu poema.
A: Não é essa a questão.
(um segundo de silêncio)
O: Sou a pior pessoa do mundo?
A: Não sei. Mas és certamente a pior pessoa que conheço.
(novo segundo de silêncio)
O: E tu, o que é que tens feito?
A: Nada.
O: Nada.
A: Sim, nada. Passo os dias a perder tempo. Mas hoje era suposto ser diferente. Quando acordei, decidi que ia fazer alguma coisa. Mas olha para mim. Cá estou eu, a fazer nada outra vez. Achas mesmo que é possível sobreviver apenas a oxigénio e whiskey?
O: Não sei.
A: Não era tão bom se fosse?

segunda-feira, janeiro 30, 2006

a critical analysis by Tiago R. Santos

on

“Dead Man’s Shoes”

directed by Shane Meadows

written by Paddy Considine and Shane Meadows.

“God will forgive them. He will forgive them and allow them into Heaven. I can’t live with that”

Everybody loves monsters. We see them everyday on TV. They are permanent residents on the headlines of our daily newspaper. You can buy ‘murderabilia’ on eBay - hair samples, fingernail clippings, socks, letters and autographs of serial killers. We get our thrills from them on the big screen. Jason Voorhees, Michael Myers, Freddie Kruger and so on, a long list of de-humanized killers representing pure evil. But these formulaic films forget one thing, an essential point that is very present on ‘Dead Man’s Shoes’ and transforms a common slasher movie into a character study. That all evil is human.

It begins with two brothers walking through England’s Midlands. One is Richard, an ex-military returning home after seven years away; the other is Anthony, a mental handicapped boy. There’s no dialogue, only a sense of grave sorrow, intercut with Super 8 images of childhood, Christmas parties, badly dressed parents, momentarily happiness. But we, the viewer, know from the start that this is a revenge story. Images in black and white suggest the younger brother was abused by a group of wannabe gangsters, a backstory that’s gradually revealed throughout the film. At first, it seems that the gang only want to get Anthony stoned and laid, nothing that merits the level of violence that will fall upon them.

But “Dead Man’s Shoes” is an example of how the audience’s perception of the story and its different characters shifts accordingly to the information they are given. Richard’s obsession for revenge seems exaggerated and out of proportion at first, a psychopath who couldn’t care less about the consequences of his behaviour. He comes face to face with the people he is going after but never flinches or even denies his actions. Instead, he tells them exactly what he plans to do. So, at this point, he not only looks and sounds insane, he’s almost suicidal.

Fast-forward all the carnage and bloodshed. In the final sequence, Richard faces the last living member of the gang, a man that now is married with two children. At the same time, we learn the truth about what happened to the brother - after being abused and abandoned on the outskirts of town, he hanged himself. So Richard’s actions, condemned by the audience from the start, assume a different dimension. They never became acceptable, but the ruthless killer is now transformed into a disturbed human being, someone who knows no other way to deal with his personal pain. And the constant presence of his dead brother by his side, like a ghost or a flesh and bone materialization of his grieve, makes him into something even scarier: a haunted man. “Did my brother scream for me? Yeah, he still does”.

At the end, it’s as if you’re inside the killer’s head, seeing things from his perspective. “You, you were supposed to be a monster - now I'm the fucking beast”, Richard says; as if he realized for the first time that even decent people make terrible mistakes. When he implores to be killed in the final scene’s climax, you understand that he’s the one who’s dead from the beginning. And, as you step into his shoes, the movie changes in your head and asks a question that most of us hope never to answer. What would you do if unspeakable violence knocked on your door? Would you be men enough to turn away or would you become a monster yourself?

terça-feira, dezembro 27, 2005

Did you have yourself a merry little Christmas?

O Natal é um momento de luto. Um dia dos mortos com pinheiros e presépios. Familiares rodeados pelos espíritos de pessoas que antes, não foi assim há tanto tempo, partilhavam a ocasião. Ali, no mesmo lugar, sentados naquela cadeira, no canto.

Eu tenho os meus dois fantasmas. Avô e Avó. Nunca gostavam de nada que viesse embrulhado em papel de prenda.

‘Porque é que foram gastar dinheiro? Porque é que eu preciso disto? Ai meu Deus, para que tanta coisa?’

Era miúdo, mas acho que os compreendia. Recebiam sempre pijamas, camisolas de lã, lenços para ir à missa. Olhavam para nós, quase-pessoas, enquanto descobríamos filmes, livros e legos, mesas de bilhar em miniatura. Não estou certo se o sorriso deles era provocado pela comoção inevitável que se sente ao observar crianças felizes, ou de incompreensão perante o nosso entusiasmo por coisas estranhas.

O Avô e a Avó ofereciam sempre dinheiro, que colocavam num envelope branco, sem nome ou data, porque cada neto recebia o mesmo. Iam buscar as notas a uma gaveta localizada atrás do balcão da mercearia, onde as moedas soltas deslizavam para se esconderem no plástico que forrava o chão da gaveta, as pontas dos cantos descoladas pelo tempo.

Eles não falavam muito, e quando o faziam era para perguntar se queríamos alguma coisa para comer, se já tínhamos namorada ou como é que estávamos na escola. O meu Avô, que todos os Domingos tinha em casa mais de dez pessoas a jogar sueca, com cartas gastas e pancadas na mesa a indicar que ‘está seco’ a espadas, desviava o olhar para mim quando o beijava na face, mesmo antes de entrar para o Alfa Romeu com os estofos quentes, já de regresso a Lisboa, e dizia sempre

‘Porta-te bem’.

A última vez que o vi estava numa cama de hospital, sem dentes e com olhos assustados. A sua massa corporal parecia reduzida a metade. Ele agora falava muito, sem parar, mas com as letras trocadas, como se fosse um idioma único, pessoal, uma invenção prodigiosa para alguém que apenas tinha a quarta classe. Beijei-o na testa antes de entrar na terra, mesmo quando as velhas disseram para não o fazer, porque ‘podia apanhar a doença’. Nesse dia, do seu funeral, a minha avó continuava a perguntar

‘Onde é que o meu Homem se meteu?’

porque nunca tinha imaginado a vida sem ele. Ela viria a morrer a 21 de Novembro de 2005, o dia do meu aniversário, depois de alguns anos num lar. A senilidade destruiu-lhe o cérebro, o desgosto roubou-lhe a alma. A minha irmã queria colocar uma fotografia de família nas suas mãos, mas as velhas não o permitiram porque

‘Se o fizeres, os mortos vão-te também querer levar’

sem perceberem que eles continuam aqui. Sentados no mesmo sítio, naquela cadeira junto ao canto, a observarem os netos e os filhos, a família e a vida que inventaram através de actos de simplicidade.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Correcção

De acordo com a Doutora Inês Luís Carlos, também conhecida como minha namorada, devo ter cuidado para não cair em preconceito. Parece que o comportamento humano é caracterizado por um contínuo entre passividade e agressividade. O ponto médio, também designado por assertividade, seria o ideal. O que se passa com os jovens do cinema é que eles revelaram uma tendência para o pólo da agressividade, algo que pode ser originado por factores sócio-culturais, como o fenómeno dos grupos de pares, e educacionais, através da observação e imitação dos comportamentos parentais.

Ou seja, não são atrasados mentais, como eu talvez tenha insinuado.

São apenas pessoas muito, muito desenquadradas.

Ou, como eles estavam em maioria, talvez fosse eu que estava a mais.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Os Reis da Selva

Está um tipo de brinco e cabelo espetado à minha frente, que atende o telemóvel e diz

‘Estou a ver o King Kong. Não, não, posso falar, não há problema. Mais ou menos, o macaco é giro’

Ao seu lado, a rapariga chama ‘Cabra’ à Ann Darrow

Há uma fila de homens enormes que também falam com as personagens do ecrã e batem palmas enquanto comem pipocas. Antes, dois elementos do grupo foram expulsos por polícias, apesar de prometerem que

‘Está bem, eu compro um bilhete’

Uma criança de boné e copo de papel de cinco litros com Coca-Cola levanta-se três vezes durante a projecção, nunca pede ‘desculpa’ ou ‘com licença’ e insiste em pisar os pés à minha namorada.

Entretanto, os polícias ficam à porta de saída, a ver o filme. Como não se ouve o barulho da estática, sei que os rádios que os ligam à Central estão desligados.

Estamos nas Amoreiras, no Centro de Lisboa.

Antes, um amigo dizia-me que já não tinha paciência para ir ao cinema. Preferia o ecrã plasma, as colunas de som e o conforto do sofá. E a garantia de silêncio.

E, naquele segundo, numa sala repleta de pessoas que não fazem ideia de como se devem comportar, ou não estão interessadas em o fazer, pensei que ele poderá ter razão.

Mas eu não tenho ecrã plasma, colunas de som e o meu sofá não é assim muito confortável. E, como sou contra a Pirataria, teria que esperar quatro meses até a edição do filme em DVD.

Ou seja, estou fodido, de uma maneira ou doutra.

Desafio para um duelo qualquer pessoa que acredite que o Homem é um animal civilizado.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Raro pensamento natalício

Um dos hábitos que tenho, quando vou pela primeira vez a casa de alguém, é olhar para as prateleiras, ver quais são os livros que estão arrumados entre as molduras com fotografias das viagens ao Brasil. É um exercício engraçado porque há sempre títulos fora de contexto, um Dan Brown entre o Paul Auster e o Don DeLillo, ou o Paulo Coelho escondido entre Saramago e Lobo Antunes. Mas há uma explicação lógica. Esses exemplares desenquadrados da restante biblioteca são sempre prendas de amigos em segundo grau, familiares distantes e colegas de trabalho. E nunca ninguém as rejeita, esconde, devolve. Porque, na maioria das vezes, são actos gratuitos de simpatia. Todos nós queremos ser dignos do melhor que as pessoas têm para oferecer. Mesmo daquelas que nos são estranhas.
Plano de um assassinato
© por Tiago R. Santos Todos os direitos reservados

INT. ESCRITÓRIO – LISBOA – TARDE

FILIPE, trinta e poucos anos com bom aspecto, está a tirar fotocópias. O seu olhar vai para alguém fora de cena. Filipe sorri, um movimento de lábios sacana, num jogo de ‘flirt'.
Páginas vão aparecendo no tabuleiro.
HUMBERTO, mais novo mas com algum excesso de peso, aproxima-se. Está a suar e olha para ambos os lados. Ambos estão vestidos com calças de fato, camisa e gravata.

HUMBERTO
Estou farto, meu.

Com muita calma, Filipe olha para o colega.

FILIPE
Estás farto do quê?

Humberto volta a olhar para os lados. Depois, tira uma pequena pistola no bolso e mostra-a a Filipe, que olha para ela, quase indiferente. Humberto volta a colocá-la no bolso, sempre a ver quem é que está à sua volta.

HUMBERTO
Vou matar o Gordo. Estou farto, porra.

A máquina continua a cuspir páginas.

FILIPE
Onde é que arranjaste isso?

HUMBERTO
Era do meu pai. Esteve na Guerra.

FILIPE
(volta ao seu jogo de flirt, sorri, não olha para Humberto)
Alguma vez disparaste uma coisa dessas?

Um segundo de silêncio.

HUMBERTO
Já.

Filipe olha para ele, sério.

HUMBERTO (CONT.)
Mais ou menos.

Filipe continua a olhar para ele.

HUMBERTO (CONT.)
Na Feira Popular, com uma espingarda de chumbo. Ganhei um urso de peluche azul.

Filipe olha para alguém que passa no seu lado esquerdo e acena-lhe com a cabeça.

FILIPE
Há uma maneira melhor de fazer a coisa.

HUMBERTO
Qual?

FILIPE
Convida-o para beber um copo.

HUMBERTO
Estou a falar a sério, caraças.

FILIPE
Eu sei.

Humberto olha para os lados.

HUMBERTO
(em voz baixa)
Veneno?

FILIPE
(abana a cabeça)
O que tens que fazer é convidar o gajo para beber um copo e pagar umas quantas rodadas. Torna-te amigo dele, ri-te das piadas, elogia-o. Diz-lhe que está mais magro. Tudo isto enquanto o embebedas.

HUMBERTO
(confuso)
E depois? Quanto sairmos do bar, dou-lhe uma pancada na cabeça. Vai parecer um assalto. É isso?

FILIPE
Nã, nã, nã. Não fazes mais nada. Deixas apenas que o gajo vá a guiar para casa. Ele nunca larga o novo BMW. E é assim que matamos pessoas em Portugal. Embebedamo-las e metemo-las ao volante. Fácil e limpinho. Claro que pode demorar tempo até o gajo se espetar. Podes ter que repetir o ritual durante meses, anos, tornar-te o melhor amigo dele, o padrinho dos putos do Gordo, talvez até férias conjuntas na República Dominicana. Mas sabes o que é que dizem sobre a paciência?

HUMBERTO
Sei, claro.

Filipe olha para Humberto, com um ar inquisidor.

HUMBERTO (CONT.)
Tu não estás bem, pá.

FILIPE
(olhar fixo)
Não sou eu que tenho a arma do meu papá no bolso do fato.

Humberto, envergonhado, volta para o seu lugar e deixa a cena.

O barulho da máquina pára. Filipe pega nas páginas que se encontram nos diferentes tabuleiros. Coloca-as numa pilha. Nessa altura, outra pessoa passa, agora pelo seu lado direito.

VOZ OFF
Copos logo à noite?

FILIPE
(sorri)
Claro, amigão. Levas tu o carro?


FIM

sábado, novembro 26, 2005

O Regresso

“Não somos o lugar onde nascemos. Nem a língua em que falamos. Não somos a nossa História, a pequena aldeia dos nossos avós, as pessoas com quem crescemos. Nem sequer as coisas que dizemos. Como é que eu sei isto? Chega aqui, mais perto, quero-te contar uma coisa. Quando estás num avião, a dez mil metros de altitude, em direcção a Nova Iorque, o teu corpo começa a mudar. Os sentidos ficam mais apurados. As mãos tremem. É algo que nunca irás compreender, mas quando te encostas naquela cadeira apertada da classe turística, com uma senhora de idade que adormeceu repousada no teu ombro, estás em mutação. Mesmo que estejas concentrado no filme de bordo, convenientemente editado para preservar os valores familiares, ou a tentar digerir comida plastificada enquanto lutas contra a turbulência, sabe que nada será igual. Mas não te estás a transformar. É apenas o regresso ao que sempre foste. Manhattan visto de cima é uma explosão de luzes e energia. Abandonas o avião e percorres os corredores, e apesar de ainda nada ser diferente, os aeroportos são todos iguais, as tuas pernas ganham agilidade. Percorres cem metros e cruzas-te com sete nacionalidades diferentes. Passaporte na mão, atrás da linha amarela, à espera da tua vez, o formulário branco preenchido e alguém que diz ‘what is the purpose of your visit, Sir?’. Sorris porque esta é a primeira vez que alguém te chama Senhor sem querer alguma coisa em troca. Estás quase lá. É ali, atrás dos motoristas que seguram nomes escritos a preto em placares brancos. Passando pelas pessoas que se beijam porque antes do reencontro tudo é perfeito. Está a nevar. Respiras fundo. A tua expiração manifesta-se e participa num processo de fusão com os flocos brancos que caem. Como se fossem velhos amigos. Sabes que estás num sítio estranho. Não conheces as estradas, não tens ideia de onde comprar o jornal ou beber um copo, não és sócio de nenhum videoclube, e nenhum amigo te vai telefonar para saber como é que tens andado. Acabou o conforto do familiar e nunca foste apresentado à Cidade. Mas sabes que estás em Casa.”

Foi nesse dia. É este o exacto momento em que decidi. A opinião de um agente de viagens vestido num fato cinza e meias brancas mudou a minha vida.

Duas semanas antes, tinha olhado para o lado e visto nada. Apenas uma casa vazia enfeitada por fotografias desactualizadas. Não tinha emprego, a minha família eram estranhos, os amigos evitavam-me. Ninguém gosta de tocar na tragédia, mesmo que seja apenas um aperto de mão. A angústia é algo que se cheira e afasta as pessoas. Fui ao banco e levantei todo o dinheiro que tinha, alguns milhares de Euros do seguro. A ideia inicial era gastar tudo em álcool e drogas, inspirar suficiente cocaína até ter a certeza que nunca mais voltaria a dormir, beber a quantidade certa até destruir o número suficiente de células cerebrais. Mas gostei das fotografias da montra. Dos prédios altos, dos neons e das pessoas que não olham à volta quando caminham pelas ruas. Pensei que era o sítio ideal para apregoar a não existência. Ou para me tornar numa pessoa completamente diferente. Só é possível começar de novo quando não há ligações com o passado. Os recém nascidos não podem ter memória.

A Primeira Vida foi Nova Iorque. Rapei o cabelo, depois de sete anos de pontas espigadas e amaciadores. Tornei-me uma pessoa bem humorada, que diz ‘good mourning’ aos vizinhos quando passa por eles nas escadas, treinando sorrisos à frente do espelho, como os actores, até que o movimento de lábios se torne convincente. Trabalhei numa Deli mexicana onde servíamos burritos a qualquer hora. Conheci pessoas que enviavam para casa todos os dólares que ganhavam, dias gastos em cozinhas escuras, a lavar pratos com água a escaldar e suor, sem dormir, sem comer, sem sorrir, mas com a garantia de que a família está melhor, que cada dia é um tijolo da nova casa. Andava pelas ruas, mas as pessoas não me ignoravam, sorriam, acolhiam-me, perguntavam-me de onde era, o que queria ser, quais os meus talentos e ambições. Fui convidado para sair, pegaram-me na mão, levaram-me para casas em Queens, ouvi histórias de infância, voltei a descobrir corpos nus. Comi bruch no meatpacking district rodeado de figuras tornadas fascinantes por esta cidade. Demorou dois meses até me sentir em casa. Foi nesse dia que abandonei Nova Iorque.

Em Praga, deixei crescer a barba, tive a minha primeira relação homossexual e pintei quadros que vendia na Ponte Karlof.

Em Paris, pintei o cabelo de loiro, comprei botas da tropa que sujava de sangue todas as noites, assaltei pessoas em semáforos. É a cidade onde disparei pela primeira vez uma arma, massacrei o meu corpo com cicatrizes e tatuagens, perdi o terceiro dedo do pé direito.

Meditei no Tibete, tornei-me vegetariano, trabalhei o campo.

No Brasil, surfei coxo e fumei maconha, chopo ao final da tarde, bronzeado constante, viagens de mota e entrega de envelopes para um serviço expresso.

Cinco anos depois, volto a Lisboa. A cidade parece ter mais luz. Alugo um quarto numa pensão mas, um mês depois, sou expulso por não pagar as contas. Percorro as ruas, cruzo-me com amigos que não me reconhecem. Sou invisível. Não existem sinais de mim. Testei novas vidas, mas nenhuma encaixou. Peço dinheiro nas ruas com um copo de papel vazio da Coca-cola. Digo que sou um veterano da Guerra do Iraque. Embebedo-me mas nunca digo uma palavra. As cordas vocais estão desactivadas. Adormeço em esquinas de prédios.

Tudo isto para nada. Porque hoje estamos a 23. Seis anos exactos depois do acidente. O passado faz parte do ADN, está gravado nas células do meu corpo. Apesar nos meus esforços, desta viagem de auto-destruição, continuarei a chorar antes de adormecer.
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