terça-feira, setembro 30, 2003

Elia Kazan

Morreu um dos realizadores mais marcantes do século passado, a mão que criou “Há Lodo no Cais”, “Um Eléctrico Chamado Desejo”, “Esplendor na Relva”, um contador de estórias de excepção. O lamento devia ser unânime mas há aqueles que se recusam a chorar. O Sr. Kazan foi um dos principais colaboradores da Comissão McCarthy na década de 50, apontou o dedo a dezenas de colegas e chamou-lhes comunistas. Ajudou a destruir dezenas de carreiras e a criar a lista negra. Kazan - esqueçam o senhor, nunca o foi - era um filho da puta, um cobarde que preferiu colaborar com um sistema que assassinava a liberdade humana. Na morte, todos os elogios fúnebres servem como um acto de relações públicas, a hipocrisia final, disfarçam-se sem jeito as manchas do passado, esquece-se a única questão relevante: É possível separar o homem da sua arte?

Roman Polanski drogou uma adolescente de treze anos e sodomizou-a. Está refugiado em França, se colocar um pé nos Estados Unidos será preso e julgado por violação. É também o autor de “Chinatown” ou “Rosemary’s Baby”. Com “O Pianista”, foi galardoado com o Óscar de melhor realizador. Suprema ironia, um país como os Estados Unidos dar um prémio a um foragido da justiça. A mim não me incomodou, pela mesma razão que consigo rever os filmes de Elia Kazan, apreciar subtilezas e génio, a direcção de actores brilhante, a projecção do próprio realizador na personagem de Marlon Brando em "Há Lodo no Cais", a justificação da denúncia. Condeno a vida privada mas isso não me impede de apreciar o seu trabalho, apenas me torno mais crítico e atento ao que vejo. Confesso, preferia não gostar de “Há Lodo no Cais” ou de “Chinatown”. Não consigo. Aos meus olhos, a arte separa-se do homem.

segunda-feira, setembro 29, 2003

O fim do talento

Lembro-me da primeira vez que assisti a “Annie Hall”. O brilhantismo do diálogo, a originalidade, Diane Keaton, Marshall McLuhan, Paul Simon num fato branco e a certeza de que a vida era exactamente como um filme do Woody Allen. Recordo também “Manhattan”, a magnífica música de Gershwin, Nova Iorque a preto e branco, sexo tão intímo como um apertar de mãos. Sorrio quando penso em “Everybody Says I Love You”, Paris e Veneza, Goldie Hawn numa dança à beira do Sena que ignora as leis da gravidade, Natalie Portman a cantar “I’m through with love, I’ll never love again”. O atendedor de chamadas de Zeus em “Mighty Aphrodite”, a interrupção do discurso de Hitler em “Zelig”, o actor desfocado em “Deconstructing Harry”, a modelo multiorgásmica de “Celebrity”. Momentos que me inspiraram, responsáveis pelo meu sonho de escrever filmes.

Leio a crítica num jornal. ““Anything Else” é como uma má cópia do Woody Allen. É difícil não perceber que este venerável autor já fez o mesmo filme quinze vezes com resultados superiores. É como ouvir um grupo de rock que já foi brilhante mas que agora se limita a repetir um acto antigo e sem vigor que perde todo o significado para a audiência e para os próprios artistas.” Este ano, pela primeira vez, não pago bilhete para assistir ao projecto do realizador nova-iorquino. Vou esperar pela cassete de vídeo ou que algum canal de televisão transmita o filme num domingo de chuva. “Small Time Crooks”, “The Curse of the Jade Scorpion” ou “Hollywood Endings” serviram de lição. Na promoção de “Anything Else”, comédia romântica com Cristina Ricci e Jason Biggs, a Dreamworks e os próprios actores fizeram tudo para esconder o facto de que o filme foi realizado por Woody Allen. Ao que parece, fizeram-lhe um favor. Mas não resultou. O filme teve uma recepção crítica e pública desastrosa.

Conta-se que os amputados acordam a meio da noite com comichão na perna de plástico, que sentem dormência no braço que morreu. A reacção daqueles que perdem o talento é semelhante. Recusam-se a aceitar o fim da inspiração, exigem prolongar a carreira mas transformam-se em palhaços tristes, jogadores de futebol em final de carreira que já não conseguem correr mas que - devido à notoriedade ganha muitos anos antes – assinam um contrato milionário, mal aconselhados por agentes e amigos que não tem coragem de lhes dizer que o seu tempo já passou, que foram grandes mas agora são humanos. Woody Allen foi uma referência durante 20 anos, parte do imaginário colectivo, o símbolo vivo de neuroses urbanas e introspecção levada ao extremo. A sua rotina de trabalho é como um relógio suíço, em Nova Iorque é Outono quando as folhas das árvores de Central Park se tornam amarelas e “The Untitled Woody Allen Fall Project” está a ser rodado. Mas tudo tem um fim. Tal como a carreira de Robert DeNiro acabou há sete anos, mesmo que ele não o perceba. Quando o vejo em filmes como “Showtime” ou “Meet the Parents”, finjo que é um actor diferente. Recuso-me a compará-lo com a força de “Taxi Driver” ou “Raging Bull”, não podem ser a mesma pessoa, simultaneamente um dos melhores actores do século XX e um dos piores do século XXI . Um exemplo nacional é Herman José, apresentador, entrevistador, figura pública, mas não comediante. O que faz agora é tão patético que a audiência bate palmas apenas para o manter vivo, um calor cheio de pena e nostalgia para alguém que já não consegue fazer rir uma criança de cinco anos. Kurt Cobain escreveu na sua nota de suicídio palavras de Neil Young: “It’s better to burn out than fade away”. Não sugiro, obviamente, a morte física como resposta à perca de qualidades. A resposta está, como sempre, no meio termo. Sair em graça, comprar uma casa no Belize e passar o resto da vida à beira mar, de calções, a beber cerveja morta e com um sorriso permanente na face. Quanto a nós, amantes de cinema, nem tudo está perdido. Ainda temos os irmãos Coen.

sábado, setembro 27, 2003

Pequeno Conto

Chegou a tempo apenas de ver à distância o comboio que partia com destino a Madrid. Fios de sangue escorriam-lhe pela mão. Tiago olhou para os pequenos círculos vermelhos que se juntavam no chão numa estranha anarquia, como planetas sem sol, e percebeu que não lhe interessava ser feliz.

sexta-feira, setembro 26, 2003

Fernando

Hoje, dia 26 de Setembro, a mãe do José faz 50 anos. Hoje, dia 26 de Setembro, o seu tio Fernando, engenheiro, caiu de um andaime enquanto fiscalizava uma obra. Já depois de os médicos lhe estancarem a hemorragia cerebral, um TAC revelou o traumatismo craniano grave. Só daqui a doze horas será arriscado um prognóstico. Estado considerado crítico. A mãe do José acredita que o futuro está nas mãos de Deus. Ao telefone, separado da família por aquilo que lhe parece agora um universo intransponível de água, ele não tem coragem de lhe dizer que o Fernando está é dependente de pormenores e tecnicidades e ciência. Qual a zona de cérebro que foi afectada, a violência do golpe, a perícia e competência da equipa médica. São poucas as palavras que tem para ela. Pergunta pelos avós, pela tia, diz para terem coragem, que vai correr tudo bem. Um conjunto de frases feitas estúpidas e sem significado, tantas vezes utilizadas que parecem falsas e sem alma como um cartão que se compra no supermercado. Mesmo que sejam sinceras. Quer dizer-lhe tanto mais, mas não faz ideia de como o fazer, dar-lhe um abraço que se alarga a todos, mas nenhum amontoado de palavras poderá alguma vez substituir o calor humano, o carinho palpável como a humidade de Verão. Sente a necessidade de inventar letras novas, o que se revela impossível. Talvez ordenar as antigas de forma diferente, mas também não resulta. Descobre que as palavras nunca poderão ser calmantes, são inúteis quando encontram desespero, dor, a angustia da perca. Tudo o que pode fazer é estar lá, mesmo que se encontre a milhares de quilómetros de distância. Mas, apesar do seu esforço, José não consegue desejar os parabéns à mãe, cinquenta anos de vida, essa idade fantástica, que agora é ofuscada pela perspectiva da morte.

quinta-feira, setembro 25, 2003

Simples

O que me aconteceu foi algo de extraordinário. Uma mulher passou por mim e, não, esperem, não estou a contar a estória como deve ser. Tenho que começar do início. Acordei, um dia perfeito de sol e brisa e aquele cheiro a Outono que nunca consigo descrever. Depois de me ligar à Internet para verificar que a média de visitas diárias ao meu Blog aumentou para três, decidi ir dar uma corrida ao Central Park. Não é algo que faça todos os dias. É o que gosto de chamar de exercício esporádico, ataques de consciência, a ilusão de que alguma vez vou conseguir ter uma vida saudável, seja lá o que isso significa. Vesti a minha t-shirt com a frase “Chicks Dig Me” estampada na frente, uma meia azul e outra vermelha (nunca consigo encontrar os respectivos pares) e os calções que utilizava quando jogava nos juniores da Portela no tempo em que o Sporting nunca ganhava o campeonato. Não me dei ao trabalho de pentear e a barba de dois dias confundia-se com os pelos que saltam do peito. Estava com o meu pior aspecto, admito, mas ia correr, pelo amor de Deus, não almoçar fora ou encontrar-me com alguém. Sai de casa e andei até ao local onde faço exercício, uma pista que percorre todo o Reservatório J. Onassis, uma distância com pouco mais de dois quilómetros. Tenho este hábito idiota de atrasar o passo, tentar adiar até ao limite o momento em que me sinto obrigado a brincar aos atletas. Foi quando estava quase a chegar - a minha mente ocupada a pensar em textos, contos, crónicas, argumentos, peças de teatro – que aconteceu, que aconteceu algo de extraordinário. Aquela mulher passou por mim. Parecia uma estrela de cinema porque escondia a face com a ajuda de óculos escuros e boné de basebol, como os actores sempre fazem. Na mão direita, segurava um leitor de CDs portátil. E o que fez foi tão inesperado que agora, algumas horas depois, escrevo sobre ela. Ali, em Central Park, perante um tipo com mau aspecto, t-shirt idiota e meias trocadas, deu-se ao trabalho de tirar os ascultadores e dizer: “Hi”.

terça-feira, setembro 23, 2003

Há pouco, pouco tempo atrás

Quando Ronald Reagan acordou naquela banal manhã de Abril, ano 1981, sentia ainda a cabeça pesada, aquela picada fria junto do olho direito que o incomodava há várias semanas. Bebeu um pouco da água que restava no copo colocado na mesa de cabeceira, a bíblia a servir como base. Ronald Reagan aprendeu a detestar aqueles círculos molhados nos móveis. Ouviu demasiadas vezes a voz zangada e maternal de Nancy e sabe agora que as manchas de humidade são permanentes. Arrasta-se até à beira da cama onde se senta, olhos de frente para o espelho e uma expressão que esconde o seu exercício mental diário. Barbara Stanwyck, Doris Day, Patricia Neal, Shirley Temple. Por fim levanta-se e, como uma criança que não consegue resistir a arrancar a crosta das feridas, leva a mão à cicatriz localizada alguns centímetros abaixo do coração. Não sabe bem porque o faz, é como se tivesse a esperança de um dia acordar e ela já não lá estar. Tal como desejava que John Hinckley Jr. nunca o tivesse alvejado, tornando célebre o nome de Jodie Foster, o sonho molhado de um frustrado com uma arma. Os seus conselheiros dizem-lhe que foi o melhor que podia ter acontecido. “O povo adora sobreviventes”, dizem. “Podemos fazer disto o seu holocasto privado”, dizem. “Devíamos ter um todos os anos. O nome de Ronald Reagan nunca foi tão falado. E a quantidade de cartas que recebemos? Batemos recordes!”, dizem. O presidente raramente ouve. Afinal, ele tem problemas suficientes. A Guerra Fria é um peso permanente nos seus ombros. Ronald Reagan faz então uma coisa que nunca se atreveria a revelar a ninguém, nem à sua mulher: Sorri. Ele sabe que é macabro, mas continua a achar piada à designação. Guerra Fria, Guerra sem guerra. Como dois cobardes que se insultam sem nenhum ter a coragem de dar o primeiro soco. Mas não é por isso que o líder do mundo livre mostra os dentes que tanto o ajudaram em ambas as carreiras, actor e político, como as duas não significassem o mesmo. Ele sorri porque quando o primeiro míssil estiver no ar, uma equipa formada com as melhores mentes do país estará fechada numa sala onde um novo termo nascerá. Qualquer acção política precisa de uma frase que fique no ouvido. Talvez o inverso resulte, Guerra Quente. Até porque a primeira sensação será de calor. Quando aquele cogumelo nuclear subir alto e apagar o sol, ficará tão abafado como numa tempestade tropical. Quando órgãos – fígado, pulmões, estômago, rins - começarem a implodir, as vítimas de radiação vão suar como se derretessem. Quando braços, pernas, tronco, pés e cabeça começarem a inchar, quilos de gelo serão apenas água ao tocarem na pele que se alarga. Quando o sofrimento for tão forte que se torna dormente, bem, aí já não sentem grande coisa. Apenas desejam morrer. Ronald Reagan deixa de sorrir. Leva de novo a mão à cicatriz, a cicatriz que simboliza a sua sobrevivência. Afinal não o faz na esperança que ela já não lá esteja. Tem apenas medo de morrer. Toma uma decisão. Usar uma táctica política tão velha como eficaz. Ronald Reagan, agora em movimentos rápidos, caminha até à secretária, abre uma gaveta de onde retira uma carta de papel presidencial, a sua caneta preferida está mesmo ali ao pé do candeeiro. Nunca o admitirá, mas lembra-se da única coisa de jeito que Jack, o seu pai, alguma vez lhe disse: “Quando tiveres medo, a tua única hipótese é fingires que és forte.”

Meu Caro Sr. Presidente Leonid Brezhnev;

“…Will the average Russian family be better off or even aware that his government has imposed a government of its liking on the people of Afghanistan? You imply that such things have been made necessary because if territorial ambitions of the United States; that we have imperialistic designs and thus constitute a threat to your own security and that of the newly emerging nations. There not only is no evidence to support such a charge, there is solid evidence that the United States when it could have dominated the world with no risk to itself made no effort whatsoever to do so. When World War II ended the United States had the only undamaged industrial power in the world. Its military might was at its peak – and we alone had the ultimate weapon, the nuclear bomb with the unquestioned ability to deliver it anywhere in the world. If we had sought world domination who could have opposed us?...”


Ronald Reagan, Carta escrita em Abril de 1981

P.S. – O texto é pura ficção, a carta facto.

segunda-feira, setembro 22, 2003

Este texto é patrocinado pela Coca-Cola.

Dia de sol, brisa agradável, ténis de corrida, chaves de casa, recibo da lavandaria, Central Park. Posso pensar que tenho tudo em ordem mas não é mais do que arrogância infantil. A verdade é que não faço ideia do que se passa. Vejo milhares de pessoas na rua acompanhadas por uma estranha e mística música ambiente que surge de um sistema de som invisível. Mães e pais e filhos, freaks, artistas, grupos de amigos com menos de 16 ou mais de 40 anos, brancos, pretos, hispânicos, asiáticos, indianos, é como se todo o mundo estivesse reunido em dois quarteirões. Pergunto a um monge tibetano que bebe um Red Bull se vai ter lugar um concerto de Rock. “Não”, responde, “o Dalai Lama está na cidade”. Faz sentido. Olho pela primeira vez para os vários panfletos que tenho na mão. “Meditate NYC – Find some breathing room”; “Tibet, Cry of the Snow Lion – NY Times review in the back!”; uma fotografia do líder espiritual do Tibete com o seguinte aviso nas costas: “Aviso: A posse deste postal ou de qualquer fotografia de Sua Santidade o Dalai Lama é ilegal no Tibete e pode levar a detenção, prisão e tortura.” Dois passos à frente, David fala-me da árvore da vida, de como precisamos que a mente esteja aberta para termos acesso à 4ª dimensão, onde Deus reside. Aponta o dedo a Bush e à América, àqueles que estão convencidos que o Todo Glorioso está do seu lado mas que na verdade representam o mal. Proclama que o Império Americano, tal como o Grego, Pérsio ou Romano, cairá sufocado pelas ruínas da sua própria criação. David representa as contradições do país. Diz que se deve ampliar o amor e dissipar o ódio mas não esconde um brilho nos olhos ao antever a vingança de Deus perante aqueles que o desafiam. Fala de Budismo mas na sua mão está uma bíblia inquieta que roubou de um motel na Virgínia. Não tenho coragem de lhe dizer que não acredito em Deus porque estou convencido que Deus já não acredita em nós. É como um pai com um filho delinquente: durante algum tempo fechou os olhos ao que se passava mas quando as coisas bonitas lá de casa começaram a desaparecer, trancou a porta. “Outra guerra? Devem estar a brincar. Foi para isto que eu os criei? Estou farto. Chega! Não voltam a pôr os pés nesta casa!” E aqui ficámos, sozinhos, com um mundo inteiro para destruir e tão pouco tempo para o fazer. Resta-nos fingir que vai ficar tudo bem, beber uma Coca Cola enquanto ouvimos palavras de bondade, tranquilidade e defesa dos direitos humanos. Imaginar o Dalai Lama a fugir para a casa de banho, depois do “concerto”, para fumar um cigarro escondido sem que a sua “entourage” o perceba. Deixar que se torne humano aos nossos olhos. Porque quando o fumo da religião se dissipar e tudo o que está à nossa volta se tornar claro, estaremos rodeados apenas de nós próprios. Mas posso estar errado. Por vezes penso que tenho tudo em ordem mas não é mais do que arrogância infantil.

P.S. Todo este espectáculo serve também para alertar o mundo para a situação no Tibete. É preciso que as pessoas saibam que 500 mil tibetanos morreram pelas mãos das tropas chinesas desde 1959. Que mais de 6000 monumentos e altares budistas foram destruídos. Que Lobsang Dhondup foi executado, acusado de “crimes políticos”, no início do ano pelo governo Chinês e que Tenzin Delek Rinpoche é o próximo. Que George Bush apenas se preocupa com o opressão dos povos que lhe convêm.

sábado, setembro 20, 2003

A primeira vez

Entro numa casa de banho vazia. Olho para o espelho e reparo que o meu corpo chora apesar do ar condicionado. As lágrimas que não são lágrimas ensopam-me o cabelo, o colarinho, a camisa azul clara que horas antes me parecia perfeita. Isolo-me de ninguém, trancado num destes compartimentos que me fazem sempre pensar em sexo rápido com mulheres tão reais como hologramas. Consigo ainda ouvir a música abafada, as gargalhadas ébrias e o barulho dos copos mas tudo me parece agora outro mundo, tão distante como sentir-me feliz. Respiro fundo e tiro um pequeno saco do bolso onde costumo guardar as moedas. O meu coração parece implodir a cada batida, tão forte que sinto um pulsar na garganta que me sufoca. Coloco a cocaína no topo de cerâmica da retrete. Enrolo uma nota de cinco euros e penso no jeito que me daria agora uma caneta Bip, as mesmas que utilizava na primária para colocar bolas de papel no cabelo encoracolado da rapariga sentada à minha frente. Rio-me sozinho da ideia de tubos como armas – canhões, pistolas, canudos de plástico munidos de setas de papel. Encaro-me como uma vítima voluntária, a personagem num filme negro que apenas serve de “comic relief” para todos os actores relevantes. Espalho um pouco do pó branco e divido-o em duas linhas compridas e finas. Inspiro o mais fundo que consigo. Quando olho para aquela superfície tão branca que quase me encadeia, reparo que falhei. A inoperância dos inexperientes. Tento de novo e a cocaína invade-me a narina e desce pela garganta com a força de um sabor azedo e ácido e inesquecível. Antes que me falte a coragem, snifo pela segunda vez e todos as sensações se repetem. A música parece agora estar mais alta. Alguém entra e por momentos fico em completo silêncio. É como se o mundo me viesse bater à porta, um cobrador de dúvidas a pedir explicações impossíveis e exigindo respostas para perguntas que nunca foram confessadas. A casa de banho transforma-se na respiração de ambos. Quero saber quem ele é, qual a sua estória. Quando sai, numa nuvem de indiferença e invisibilidade, sento-me de novo sozinho. Tão sozinho como sempre me senti.

C. espera no bar. Olha para mim com ar curioso, quer ler reacções, atitudes, comportamento, discurso, linguagem corporal. Não lhe dou nada. “Sentes-te como se tivesses algo alojado no fundo da tua garganta, algo que te apetece cuspir?”. Sim. “Sentes um sabor ácido e amargo?” Sim. “Sentes que não consegues estar quieto, que estás a sapatear sentado, que os teus dedos tocam uma melodia absurda no balcão?’”. Sim. “Sentes-te bem?”. Sim (minto). Estou desperto mas há muito tempo que isso deixou de ser motivo de felicidade. Apetece-me dizer-lhe que experimentei cocaína pela mesma razão que começei agora a fumar. Quero confessar que preciso de descobrir se estou vivo porque me sinto morto. Tenho pulsação, se me picarem com uma agulha dói. Mas existem formas de suícidio em que continuamos vivos. Mortos sem morrermos. Actividade cerebral reduzida, tensão arterial irregular, contagem de esperma abaixo da média, qualidades sociais nulas. Estou aqui mas na verdade não estou. Estas verdades apertam-me o peito e sinto que engasgo, como alguém que tenta controlar o vomitado. Preciso desabafar mas não o faço, nunca. Prefiro pedir mais uma cerveja e oferecer um sorriso à M. que me serve copos, investigar o bar à procura de mulheres que cruzam as pernas com elegância sexual. Decido afundar esta angústia em álcool e sexo, fingir que tudo isto não é mais do que uma fase infantil, o resultado de dúvidas resultantes de trabalhos incompletos e não apreciados. Entendo que me sinto castrado pela minha falta de talento, assombrado por ambições demasido elevadas para as minhas capacidades. E quero que tudo isto se foda. A minha sede aumenta. Uma morena de sapatos altos parece disposta a descobrir a verdade sobre a influência da cocaína no desempenho sexual. Sapateio parado no chão de madeira. Peço mais uma cerveja, faço mais um sorriso, dou uma palmada nas costas do C. e levanto-me. Enquanto caminho na direcção de mais uma noite que não existirá dentro de um mês, tenho um último pensamento: Espero que a segunda vez que morrer seja mais eficaz.
RITUAL

DIRECÇÃO DE CENA

Amanhece. Junto à janela, um homem de boxers fuma um cigarro que apaga num cinzeiro repleto de beatas. Formas anelares vermelhas enriquecem vários dos filtros castanhos, flores numa floresta de cinza. Uma aliança dourada está encurralada num dedo que engordou e torna inútil qualquer tentativa de a retirar. Lisboa parece uma cidade diferente sobre a primeira luz do dia. O homem consegue ver a ponte sobre o Tejo no quarto andar de um apartamento desconhecido. Suspeita estar em Belém: o ângulo de visão sobre a estrutura metálica, a forma como pássaros anunciam a madrugada e o cheiro a bolos e a rio que lhe desperta também o apetite. Uma brisa entra por convite. Ele fecha os olhos e sente por um momento que está em São Francisco. Imagina as pessoas, o inglês americanizado, as colinas e os eléctricos. Quando ouve barulho atrás de si, recorda-se de colegas de quarto argentinos, de ratos embutidos em paredes ocas e dela. De ambas. Regressa a Portugal, volta-se e repara na agitação do molde uniforme de massa que se esconde por detrás dos lençóis brancos de cetim. Roupa abandonada ao lado da cama, calças ou camisas ou saias ou roupa interior.

Tens um cigarro?
Não, era o meu último. Porque é que achas que existe este fascínio pelo tabaco depois do sexo?
Uma maneira de nos matarmos um pouco mais?

A mulher está agora descoberta. Nudez, formas, beleza, uma pantera tatuada no ombro, tudo ostensivo para o homem de boxers ao pé da janela.

Consegues dizer que me amas?
Não. Gostavas?
É indiferente. Posso utilizar o telefone? Estou sem bateria no móvel e tenho que ligar à minha filha. Ela está agora a sair para a escola. É o primeiro dia dela, sabes?
Está na sala, junto da televisão.

O homem coloca a camisa e abandona o quarto. A mulher continua deitada na cama. Esconde o corpo por baixo dos lençóis e repousa a cabeça na almofada moldada pelo seus longos cabelos pretos. O silêncio invade o quarto e os ruídos da sala ganham vida.

Como é que estás, nervosa?... Não fiques, vai correr tudo bem…O pai ama-te e quando voltares já vai estar em casa… Beijinhos.

A tristeza inunda-lhe os olhos. Volta, envergonhado, para o quarto. Os homens quando choram sentem que perdem algo de si. Como se derretessem.

És um bom pai e um péssimo marido.
Recuso ambas as acusações.
Sabes, sempre gostei dos teus filmes. Tens... presença.
Tenho que ir.
Volto a ver-te?
Não.

O homem veste-se e sai sem uma palavra. Ainda pensa em voltar mas sente que nunca conseguiria dizer nada sem que um criador obscuro o tivesse escrito primeiro.

DIÁLOGO

Porque é que os actores são sempre tímidos?
Não sei. Porque é que os taxistas não sabem guiar? Ou porque é que as cabeleireiras têm sempre péssimos penteados?
Se eu fosse actriz, ia ser a pessoa mais extrovertida do mundo. Ia espalhar charme e graça. Ia divertir multidões. Ia ter tanta confiança própria que nunca estaria triste ou deprimida.
Ias perder a alma e transformavas-te numa marionete. Os teus sofás seriam capa da Caras, o teu casamento faria parte do álbum de recordações de milhares de Portugueses, serias protagonista de um reality show absurdo onde a tua privacidade serviria de entretenimento para donas de casa e mecânicos. Apenas mais uma cara no museu de cera da celebridade.
Não te sabia tão irónico.
A ironia está morta. Ligas a televisão e vês o líder do mundo livre, enquadrado entre fotografias familiares, em discurso directo para o povo oprimido. Olha-o nos olhos e diz que quer libertá-los. Que os ama. E que daqui a alguns meses, depois de bombardear as suas cidades, matar os seus filhos, invadir o seu país, tudo será melhor. Hoje, agora, a ironia é não ser irónico. A inocência tornou-se sarcasmo.
Para alguém que está nu e com uma semi-erecção, tens valores morais e éticos muito rígidos.
Não existem semi-erecções. Ou se está duro ou flácido. Preto ou branco. Quando fores um pouco mais velha, vais perceber.
Queres ir comer alguma coisa?
Não. Tenho que telefonar à minha filha. Vai ter hoje a sua primeira aula de dança. Comprei-lhe sapatilhas brancas. Passou o dia de ontem a treinar à frente do espelho. Posso usar o teu telefone?
Está no corredor.
Até já.
Vemo-nos mais tarde?
Só se eu não o conseguir evitar.

CLIMAX

Vai tudo correr bem, vais ver... Não dói nada, as vacinas são rápidas e o médico dá-te um rebuçado depois.... O pai adora-te... Sim, hoje vou chegar cedo a casa... Vou comprar gelado e passamos a noite a jogar às charadas... Até logo. Coragem.

Quando o homem regressa ao quarto, a mulher loira de raízes escuras está desperta, olhos bem abertos. Continua deitada na cama, lençol branco bem encaixado entre os braços, e fuma um cigarro. A meia luz do amanhecer entra pela janela entreaberta e toda a divisão torna-se surreal, como num sonho onde não existe dia ou noite, apenas tempo e espaço indefinito.

Gostas muito da tua filha, não gostas?

O homem não responde. Está ocupado a tentar encontrar as calças por debaixo da cama. No intervalo de cada baforada, a mulher faz uma pergunta.

A mãe não se importa que lhe telefones tão cedo?
Que idade é que ela tem?
Tem os olhos da mesma cor do que tu?

O homem senta-se na cama, de costas viradas para ela. Calça os sapatos. Ela levanta-se e abraça-o por trás, revelando as costas nuas, a linha do pescoço, a definição das costelas, a pantera tatuada no ombro.

Tenho que ir. Tenho mesmo que ir.
Eu sei que tens. Duvido até que tenhas estado aqui.
Consegues dizer que me amas?
Posso tentar. Queres?
Não. Tenho que ir.
Gostei muito de te ver outra vez.
Outra vez?

O homem levanta-se. Olha para ela e entende.

Não é assim que faço as coisas. Isto não devia ter acontecido.

Ela deita-se de novo, desta vez com o peito destapado. Acende novo cigarro.

Descansa. Não é por termos fodido duas vezes que te vou obrigar a levares-me a jantar e ao cinema.

O homem pega no casaco—

Não devias...

-- e sai apressado. A mulher levanta-se e caminha, lentamente, até à sala. Junto à televisão, entre uma jarra com flores de plástico e uma agenda telefónica, encontra o telefone no descanso. Apaga o cigarro, olha para a tecla que ordena “redial” e levanta o auscultador. Espera alguns segundos.

Ao sinal seguinte, serão sete horas e vinte e três minutos...
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