terça-feira, outubro 28, 2003

O homem que não podia amar

Enquanto Miguel estava sentado naquela mistura entre cama e maca, braços esticados e mãos que apertam o colchão como quem tem medo de cair, olhos presos ao quadro de uma vista para o mar, paredes brancas e esterilizadas, tudo em que pensava era no que tinha para fazer amanhã. Este era um exame de rotina, tensão arterial um pouco alta, cuidados a ter com o açúcar e o sal, deixar de fumar. O Doutor Ruas entrou na sala e tudo parecia apenas mais um take de uma cena repetida até à exaustão onde somente os pormenores mudavam. Hoje, este ano, o médico usava óculos, coisa que nunca tinha sido vista. Miguel percebeu mais tarde que o acessório daria dramatismo à cena e soube, pela primeira vez, que as pequenas coisas escondem significados espantosos.

‘Tenho boas notícias e más notícias. Continuas em óptima forma física. Vais viver até aos cem anos. O problema é que descobrimos um desequilíbrio químico no teu cérebro. Existe uma anfetamina natural que os americanos baptizaram de PEA - ou phenylethylamine se quisermos ser mais específicos – que é responsável pela produção da dopomina neuro-química que, por sua vez, solta oxytocina. Estas substâncias, incluindo a norepinephrine (que estimula a criação de adrenalina), são transportadas para todo o corpo. As mãos começam a suar, o coração a bater mais depressa, os níveis de energia disparam. Ora bem, segundo estes resultados, nada do que acabei de referir se passa na tua cabeça. E o que isso implica, Miguel, é que nunca vais conseguir amar.’

Era uma criança de apenas três meses mas a licença de parto já tinha expirado. Rosa deixou Miguel em casa da avó, mas jurava horas antes perante uma amiga que nunca iria conseguir separar-se do seu bebé. O que a fez libertar aquela mão de porcelana de dedos frágeis foi o sossego, a ausência de gritos ou lágrimas. Durante toda a sua infância, Miguel sempre foi considerado uma criança calma, bem comportada. Nunca chorava se os pais não lhe davam doces, não se fechava no quarto quando a mãe chegava tarde a casa, passava os dias sentado no sofá da sala a ler enciclopédias ou livros de filosofia que roubava da biblioteca pública, onde Rosa trabalhava. Mais tarde, já adolescente, levava raparigas no intervalo do almoço para a casa vazia de progenitores, relações temporárias seladas com promessas eternas, ‘desejo-te’ sempre substituído por ‘adoro-te’, a tentativa dos Homens em justificar a vontade sexual com séculos de sentimentos. Quando Rosa falava do Miguel às amigas entre corredores de livros, rodeadas pelas palavras de Kafka ou Eça de Queirós, no meio de sorrisos sonoros, dizia com a sabedoria omnipresente das mães que o seu filho tinha muito amor para dar, mas não fazia ideia de onde o colocar. Depois, pelos vinte e um anos, uma gravidez inesperada, o final do sonho de uma licenciatura, início da carreira como vendedor de carros, casamento, filha, empregado do ano, todos falavam do jovem que vendia BMWs enquanto citava a analogia da Caverna de Platão ou a manifestação do Absoluto e do Belo de Hegel. Casa, família, impostos em dia, seguro médico, a filha em colégios privados, escondida do mundo real como quem brinca ao faz-de-conta. Miguel pensou durante mais de trinta anos que tinha tudo aquilo que sempre desejou. Até o Doutor Ruas entrar naquela sala, óculos na face, olhar baixo na direcção dos papéis que segurava na mão. Engraçado como as más notícias assumem sempre a forma de números, dados, estatística.

Se, quando estivermos quase a chegar aos cinquenta anos, alguém nos disser que nunca amámos nesta vida, a única coisa que podemos fazer é parar e prestar atenção. Se tiverem provas, bem, então estamos mesmo em problemas. Miguel refugiou-se no café onde lia o jornal todos os dias e vasculhou a sua memória. Tudo o que precisava era de um único momento de amor, algo que provasse que toda aquela teoria estava errada. Se fizemos um esforço, não precisamos de morrer para a vida nos passar diante dos olhos. Três horas depois, desistiu. Soube então que era verdade, que pensou que tinha amado porque é o que todos fazemos, porque estamos convencidos que nos torna melhores pessoas, que dá sentido a uma vida anárquica e sem direcção, onde o impossível é provável. Miguel viveu a sua vida como um mágico que cria a ilusão de sentimentos mas agora descobriu algo que sempre foi parte dele, desde aquele dia em casa da avó, três meses de idade e já desligado de quem lhe ofereceu sangue, pulso, batimentos cardíacos, movimentos da pálpebra. Num momento de honestidade inédita, limpo de tudo o que não fosse a verdade, sentiu o quanto gostava da família e chorou quando percebeu que conseguiria viver sem ela, que nunca seriam parte dele, que a solidão seria sempre algo que admirava.

Quando Miguel atingiu os cinquenta anos e cerrou os olhos perante a multiplicidade das chamas, sentiu-se confortado pela falsa escuridão e decidiu quebrar as regras pedindo mais do que um único desejo. Sossego, passeios na praia, assistir a um bom jogo de futebol ao fim-de-semana e ter tesão durante, pelo menos, mais dez anos. Mas fez mais do que isso. Contra os desejos da mulher, aderiu à prática de páraquedismo, todos os meses saltava sobre uma cidade diferente sorrindo como um adolescente, sensações que nunca lhe tinham passado pelo corpo, euforia, aquele vazio no estômago quando enfrentava a porta do avião e os fortes ventos que o abraçavam. Tornou-se também fanático por chocolate, por vezes comia duas barras por dia, mais uma vez contra os conselhos da família, um homem daquela idade, com o perigo de diabetes, não era saudável, pois não, mas o Miguel não se importava com nada disso, sentia que vivia pela primeira vez e queria tudo aquilo que tinha perdido. Quando faleceu suavemente, a diferença que uma noite faz, deitou-se vivo e acordou morto, todos o recordaram pela sua excentricidade, pela alegria de viver, pelo entusiasmo, pelo carinho. A filha, agora uma mulher, levantou-se perante todos e, numa mistura de lágrimas e orgulho, relembrou as palavras de Rosa; ‘O meu pai teve muito amor para dar, mesmo se não fizesse ideia de onde o colocar.’ O Doutor Ruas, na primeira fila e desde aquele dia no consultório o melhor amigo do falecido, não conseguiu evitar um sorriso porque a vida de Miguel tinha sido na verdade o oposto. Recordaria sempre o homem que tinha inventado amor a partir do nada, como um ilusionista que descobre um ás de copas num baralho de duques.

segunda-feira, outubro 27, 2003

Capítulo V – Atar os nós, resumir tudo para fácil compreensão e a obrigatória lição de moral.

Senhores e Senhoras, sem mais demora, apresento-vos um dos mais conceituados psicólogos portugueses, único recipiente nacional dos famosos prémios Darwin, Doutor Professor Emídio Moniz.
(palmas) (silêncio)
Boa noite, caros espectadores. Antes de começar a minha apresentação, quero dar uma palavra de louvor para esta iniciativa. A contextualização de tópicos chocantes e perturbadores como estes que acabámos de presenciar é fundamental para o bom funcionamento da sociedade e para o enquadramento psicológico positivo da juventude. Sim, confesso que preferia viver num mundo onde os portageiros não fossem criaturas deprimidas e angustiadas. Mas temos que abrir os olhos. Temos que encarar a verdade. Muitos perdem o seu emprego devido ao avanço das novas tecnologias. Tenho uma amiga, a Diolinda, que era a melhor operadora de chamadas eróticas que alguma vez conheci. Uma verdadeira profissional. Mas até nessa indústria em expansão, o factor humano foi eliminado. Agora são máquinas, gravações, que estão no outro lado, não uma insatisfeita dona de casa com um fetiche por elásticos. Podem dizer, mas ò Moniz, a verdade é que assim ganham mais dinheiro. Talvez, talvez, mas quem é que, numa altura dessas, quer ouvir ‘se já teve um orgasmo, carregue na tecla 1’. Onde é que está o romance? A interacção humana que tornou o sexo pelo telefone uma prática tão apreciada e respeitável? Porque é quando essa interacção humana falha que surge o segundo problema apresentado por estes arrojados episódios. As drogas! Sim, as drogas. Sei o que estão a pensar, que esse é um problema que nunca entrará nas vossas casas. Pois bem, estão enganados! Porque em qualquer casa existe um pacote de Tang . Vão-me dizer que Tang não é uma droga a sério, mas meus amigos, todos nós sabemos que tudo o que importa são as intenções e tenho aqui dados científicos que revelam que o consumo de Tang leva directamente à escalada para drogas mais pesadas. Como podem ver no gráfico que apresento, depois do Tang surge o açúcar granulado, depois a farinha e o pó talco e logo imediatamente a seguir o crack. Imploro-vos, limpem o vosso lar destas tentações. Porque os resultados podem ser drásticos. O que nos leva ao terceiro ponto. Os problemas dos nossos filhos com a lei. Vou ser o mais claro possível nesta questão. Orientem os vossos filhos. Falem com eles, tentem que eles percebam. Peçam para eles desligarem a Internet por um minuto, ou para colocarem a Playstation no pause. Olhem-nos nos olhos e digam-lhes: “Filho que eu amo tanto, se estás a pensar cometer algum crime nos próximos dias” (silêncio) “não o faças no fim de semana. Se estás a pensar roubar uma loja de conveniência, não deixes as coisas para Sábado, Terça feira é um melhor dia, as coisas estão mais calmas e podes sair da prisão logo no dia seguinte. Queres conduzir um carro sem carta, muito bem, mas apenas à Quinta-feira, porque no fim de semana passas um dia na prisão sem sequer seres ouvido pelo juiz.” E nós vimos, meus amigos, pelos nossos próprios olhos, as consequências que uma noite na prisão pode trazer. Sodomia (silêncio), violência (silêncio), perder um jogo da selecção nacional. Vale a pena. Digo convictamente que não!
(palmas)
Obrigado pela vossa atenção. Nas barraquinhas atrás de mim podem encontrar os livros que transformarão as vossas vidas para o melhor. Todos da minha autoria. “As máquinas são os nossos inimigos”, “Doces e sumos em pó: drogas domésticas”, “Também para os criminosos o fim de semana deve ser de descanso ou como cometer crimes à terça feira é mais divertido e eficaz.” E se levam alguma mensagem desta conferência, que seja que a vida é um bonito passeio num caminho de terra no parque de Monsanto, onde cada canto escondido revela uma tentação.

quinta-feira, outubro 23, 2003

Capítulo IV – Carlos e Diogo

Transcrição do interrogatório a Diogo Andrade, vinte e sete anos, Bilhete de Identidade número 138490432. Funcionário da Brisa, portageiro no quilómetro 25 da autoestrada Lisboa/Caiscais. Investigação conduzida pelo Detective Carlos Rodrigues, distintivo número 197648 da Polícia Judiciária. Segunda-feira, dia 20 de Outubro 2003. 17h21.

Carlos Rodrigues: Acaba aqui, Diogo. Tudo acaba aqui. Tenta ser objectivo mas não escondas pormenores. Nunca se sabe se algum detalhe pode ajudar a investigação. (silêncio). Não te importas que te trate por tu, pois não? Somos todos amigos aqui.
Diogo Andrade: Não, não me importo.
C.R.: Quero que saibas também o quanto lamento tudo o que aconteceu. A sova no hotel, o (silêncio) que aconteceu na cela.
D.A.: (silêncio) Deixa-me deixar uma coisa bem clara, antes de começarmos. O que se passou não se passou, entendes? Não vou dizer uma palavra sobre esse assunto.
C.R.: Compreendo e respeito. Fala-me daquele final de tarde no hotel.
D.A.: Não, para tudo fazer sentido, temos que ir mais longe. Quero que percebas bem o que se passou. Quero que a minha tragédia valha algo. Que ao menos algo mude com o meu sacrifício. O que vou dizer, aquilo que ficar gravado nesta porcaria aqui, tem consequências políticas, percebes?
C.R.: Continua.
D.A.: Tudo começou com o meu pai. O meu pai era portageiro. Desde miúdo que ele me fascinava com relatos de dias de trabalho, o convívio com as pessoas, as relações humanas, o contacto com celebridades. Eusébio, Amália, Tony de Matos, Júlio Isidro, o meu pai conhecia-os todos, clientes habituais na autoestrada número 1. Não me esqueço das diferentes estórias, de como o Eusébio se enganava sempre nos trocos ou...
C.R.: Diogo, não me entendas mal. Tudo isso é fascinante. Mas achas mesmo que é relevante para o caso?
D.A.: Estou a chegar lá. Como imaginas, cresci a acreditar que eu ia ser o melhor portageiro que este país alguma vez conheceu. (silêncio). Até ao dia em que inventaram a maldita via verde. Acho que ninguém imagina o isolamento a que nós, portageiros, fomos sujeitos. A quantidade de depressões na profissão, as tentativas de suicídio. É como se, oficialmente, nos tivéssemos tornado obsoletos. Já ninguém pára numa portagem, os carros passam na indiferença dos duzentos quilómetros por hora. Como se fossemos fantasmas. (silêncio). Desculpa, tenho que parar um minuto. (silêncio).
C.R.: (silêncio) Toma um lenço.
D.A.: Obrigado. (silêncio). O desânimo instalou-se no meio do pessoal. Uns refugiaram-se no álcool, outros nas linhas eróticas, alguns ficaram viciados no Big Brother. Eu (silêncio), eu comecei a experimentar com drogas. Li umas coisas sobre cocaína e fiquei com curiosidade. Infelizmente, mais uma das grandes injustiças deste mundo, os portageiros não ganham bem. Só tinha dinheiro para cheirar Tang Laranja.
C.R.: Oh, o horror.
D.A.: Em pouco tempo, as minhas narinas começaram a ficar feridas. Começei a sofrer hemorragias. (silêncio).
C.R. Continua. Por favor.
D.A.: Quando conheci a Sara, o primeiro carro que parou na minha cabine durante todo o dia, tinha feito já dois sacos de Tang Limão.
C.R.: Já estavas a dar no Limão?
D.A.: Sim, que é muito mais forte. Nem pensei duas vezes quando ela me disse aquilo...
C.R.: Disse o quê?
D.A.: (silêncio) Que chupava como uma virgem ninfomaníaca.
C.R.: (silêncio)
D.A.: (silêncio)
C.R.: Sabes o que aconteceu no hotel? É altura...
D.A.: Sim, eu sei de onde veio todo aquele sangue. Tens razão, é altura de dizer a verdade. Comecei a sangrar do nariz quando a estava a comer. Não conseguia parar. Quando ela reparou, entrou em pânico e fugiu. Eu fui à casa de banho limpar-me. Reparei num tipo através do espelho mas, antes que pudesse dizer seja o que for, ele cegou-me com mace. (silêncio) Não me lembro de mais nada. (silêncio) E acabei aqui. (silêncio). Analmente abusado ao Domingo por um tipo que se intitula ‘João Enraba o Cão’. (silêncio). E perdi o jogo de Portugal. (silêncio). Oh, a humanidade.
C.R.: Não sei o que dizer Diogo. Talvez tenhas razão. Espero que esta estória, a tragédia de um portageiro existencialista, de uma virgem ninfomaníaca, de um segurança privado passivo-agressivo, de um polícia de carreira que gostaria de ter sido dançarino, talvez tudo isto sirva para relembrar às pessoas que os portageiros também são pessoas. Que não custa perder cinco minutos das nossas vidas para termos uma palavra amiga com quem passa o dia numa caixa no meio da estrada. Talvez o teu sacrifício não tenha sido em vão. Quem sabe se não serás visto como um herói no futuro. A padeira de Aljubarrota dos portageiros. Quanto ao jogo, não te preocupes. Tenho um amigo com quem preciso de fazer as pazes que gravou o jogo. Acho que nós os três nos podemos dar muito bem.
(silêncio) (fim da transcrição)

Amanhã é o dia mais importante da sua vida! O final desta estória Chocante! Escandalosa! Perversa! Não se pode dar ao luxo de perder a conclusão ou ficará na dúvida o resto da sua vida!!!

quarta-feira, outubro 22, 2003

Capítulo III – Carlos e Aníbal

Transcrição do interrogatório a Aníbal Figueiredo, quarenta e oito anos, Bilhete de Identidade número 193293472. Sargento da PSP de Oeiras, distintivo número 393483. Investigação conduzida pelo Detective Carlos Rodrigues, distintivo número 197648 da Polícia Judiciária. Segunda-feira, dia 20 de Outubro 2003. 16h22.

Carlos Rodrigues: Sargento.
Aníbal Figueiredo: Detective. Em que posso ajudá-lo?
C. R.: Estou a investigar os acontecimentos de Sábado, o caso do Hotel Hibis.
A.F.: Ora bem, Diogo Andrade deu entrada na esquadra por volta das nove da noite depois de ser apreendido. Foi colocado na cela, esperando audiência com o Juiz hoje, segunda-feira. Apresentava vários sinais de violência física, olhos inchados, hematomas vários.
C.R.: Eu li o relatório Sargento. O que quero saber, é o que aconteceu depois.
A.F.: Bem, o problema é que a detenção teve lugar neste particular fim de semana, quando a cidade estava em fogo com o jogo...
C.R.: Grande espectáculo.
A.F.: Aquela jogada...
C.R.: Achas que foi penalty?
A.F.: Tenho dúvidas mas sei uma coisa. É altura daquele tripeiro do Couto encostar. Foda-se, aquilo é só porrada. Já não se usa.
C.R.: E o lance do Ronaldo?
A.F.: O puto não passa a bola a ninguém, mas quando atina...
C.R.: O melhor jogo de futebol de sempre.
A.F.: Sabes que mais? Concordo.
C.R.: Orgulho de ser português.
A.F.: (silêncio) Verdade.
C.R.: (silêncio)
A.F.: (silêncio) É de ficar comovido.
C.R.: Raramente chorei na minha vida.
A.F.: (silêncio)
C.R.: Bem, estávamos a falar do quê?
A.F.: (silêncio)
C.R.: Ah, Diogo Andrade.
A.F.: Certo.
C.R.: Continue.
A.F.: Pá, trouxeram o miúdo para aqui no Sábado. Primeiro ficou numa cela sozinho. O problema foi quando começaram os confrontos na cidade. Tivemos que trazer dezenas daqueles hooligans para a esquadra e tínhamos duas soluções. Deixar o miúdo no meio dos carecas ingleses (silêncio) ou metê-lo na mesma cela do João ‘Enraba o Cão’.”
C.R.: (silêncio) João (silêncio) ‘Enraba o Cão’.
A.F.: Certo.
C.R.: Quem é o (silêncio) ‘João Enraba o Cão’?
A.F.: Um pervertido que passa a vida cá na cadeia. O homem tenta comer tudo o que tenha buraco. O apelido vem de um caso de alguns anos atrás, os cães de um bairro em Oeiras de Baixo começaram a ter um comportamento estranho, ladravam muito. Descobrimos que o João (silêncio). Estás a ver.
C.R.: Eheheh, porque é que não tentaram contactar o Juiz?
A.F.: (silêncio) Era Domingo. (silêncio). Dia de jogo. Até o Presidente da República estava inacessível.
C.R.: Não havia uma Juíza mulher que pudessem contactar?
A.F.: Eheh, pensei nisso, mas o problema é que a maior parte dos Centros Comerciais não tem rede. É impossível telefonar para o móvel de alguém ao Domingo.
C.R.: Ehehehehe, verdade, verdade. Mas ao menos mantiveram a cela do puto e do João (silêncio) ‘Enraba o Cão’ vigilada, certo?
A.F.: (silêncio)
C.R.: Certo?
A.F.: (silêncio) Era Domingo, dia do jogo. Compreendes, estou certo? Era o nome do país que estava em causa, foda-se.
C.R.: Deus do Céu! E o puto foi...?
A.F.: Oficialmente? Não. Aqui entre nós? Duvido que o miúdo se consiga sentar nos próximos dias.
C.R.: (silêncio) Isto está a gravar.
A.F.: O quê?
C.R.: A conversa está a ser gravada. Não há oficialmente e aqui entre nós. Está tudo a ser gravado.
A.F.: (silêncio) Não me fodas.
C.R.: Já que falamos nisso, por acaso não sabes como dá para desgravar as conversas?
A.F.: Eu? Nem sei ligar o meu computador, quanto mais. O único instrumento de trabalho que utilizo é aqui a minha companheira (silêncio). Foda-se.
C.R.: O que foi?
A.F.: Onde é que meti aquela merda?
C.R.: O quê?
A.F.: A minha pistola.
C.R.: Como é que perdeste a pistola, foda-se?
A.F.: Espera, deixa-me pensar por onde é que andei hoje. (silêncio) De manhã fui falar sobre dever cívico ao Liceu Secundário Isaltino Morais. (silêncio) Depois fui interrogar um preso na cadeia de Oeiras. Não me digam... Foda-se. Foda-se, foda-se, foda-se. Nem te sei dizer quantas vezes é que esta merda já me aconteceu.
C.R.: Aníbal?
A.F.: O que foi, foda-se?
C.R.: (silêncio) O gravador? Cuidado, meu.
A.F.: Sabes que mais? Que se lixe o gravador. Estou farto. Farto. Tenho quarenta e oito anos, vinte e três na profissão. E estou farto. Nunca quis isto. Eu queria é ser dançarino. Mas não, era pouco 'aceitável'. Onde é que estava o lobby gay nessa altura? Eu tinha planos. Ou pelo menos tinha planos para fazer planos. E isto não tem nada a ver. Deixa-me mostrar-te uns passos. Eu tinha jeito Carlos, acredita. Espera aí.
C.R.: Aníbal, esta não é mesmo a altura...
A.F.: (silêncio) (respiração ofegante)
C.R.: Uau. Tens uma elasticidade admirável para alguém da tua idade.
A.F.: Dancar é a única coisa que me faz feliz. (silêncio). Foda-se. Será que deixei-a na casa de banho?
C.R.: Chama-me o puto. Quero falar com ele. É tempo de acabar com isto.
A.F.: Talvez tenha ficado no carro.
(silêncio) (fim da transcrição)

Faltam dois capítulos para o fim! Será a verdade revelada por fim? Irá Diogo confessar? O que se passou naquele fatídico dia? Não perca a quase conclusão desta cativante estória!!!

“Diogo: Sim, eu sei de onde veio todo aquele sangue. É altura de dizer o que se passou.”

terça-feira, outubro 21, 2003

Capítulo II – Carlos e Sara

Transcrição do interrogatório a Sara Carvalho, vinte e três anos, Bilhete de Identidade número 918237456. Estudante de Medicina na Faculdade de Lisboa. Investigação conduzida pelo Detective Carlos Rodrigues, distintivo número 197648 da Polícia Judiciária. Segunda-feira, dia 20 de Outubro 2003. 15h11 (Nota: A interrogada foi descoberta na sex-shop ‘Porta das Traseiras’, localizada nos Restauradores, trancada numa cabine de filmes desde Sábado.)

Carlos Rodrigues (C.R.): Sara, antes de começarmos, quero que saiba que o pior já passou. Agora está entre amigos. Estou aqui para a ajudar.
Sara Carvalho (S.C.): Isso foi o que o outro disse.
C.R.: O outro?
S.C.: O homem que me trouxe aqui. Quando dei por mim nua no meio da autoestrada Lisboa/Cascais, ele parou o carro, pedi-lhe para me levar a casa mas disse que conhecia o sítio perfeito para eu relaxar. Quando percebi onde estava e o que ele queria, tranquei-me na primeira porta que vi e recusei-me a sair. (silêncio) Nunca tinha visto um filme pornográfico na minha vida. Não tenho cabo, sabe? Nos últimos dois dias, vi quarenta e cinco. Sabia que as bolinhas chinesas podem estimular a vagina e o ânus ao mesmo tempo?
C.R.: (silêncio) Sara, vamos voltar atrás, ao Hotel. Tente ser objectiva mas não esconda pormenores. Nunca se sabe se algum detalhe pode ajudar a investigação.
S.R.: Tenho alguma dificuldade. (silêncio). Fui sair com o Diogo e acabámos (silêncio) envolvidos. Ele convenceu-me a ir para o Hotel, dizia que queria estar sozinho comigo. Lembro-me que ficou zangado quando lhe disse que sou... (silêncio)
C.R.: Que é? Sim, Sara?
S.R.: Não consigo. (silêncio). Isto são coisas muito pessoais. Não. (silêncio)
C.R.: Sara, é importante que me diga tudo. Pense em mim como o seu padre. O que disser não sai desta cabine. Mas preciso da verdade para descobrir porque lhe fizeram mal.
S.R.: (silêncio) Ele ficou zangado quando lhe disse que sou virgem.
C.R.: Virgem?
S.R.: Sim.
C.R.: Sara, o que vai uma rapariga virgem fazer para um quarto de hotel com o rapaz?
S.R.: Está a duvidar de mim?
C.R.: Confesso que custa a acreditar.
S.R.: (silêncio) Pratico sexo oral, está bem? É só. Foi isso que fui fazer para o quarto. Contente?
C.R.: (silêncio) Quando é que ele a atacou?
S.R.: Depois de lhe ter feito um (silêncio) sexo oral, ele estava preparado para me fazer o mesmo. Beijo-me na (silêncio) região baixa...
C.R.: Região baixa? Em que parte Sara? Lembre-se, os pormenores são importantes.
S.R.: Você sabe onde...
C.R.: No (silêncio) triângulo das Bermudas?
S.R.: Triângulo das Bermudas?
C.R.: Onde milhares de homens desaparecem para nunca mais serem vistos?
S.R.: (silêncio) O quê?
C.R.: Continue, por favor.
C.R.: Quando o Diogo acabou de me beijar no (silêncio) triangulo das Bermudas (silêncio) foi subindo pelo meu corpo. De repente, vi-lhe a cara, estava cheia de sangue. Olhei para o meu estômago e peito e vi sangue por todos os lados. Quando dei por ela, tinha a cara também cheia de sangue, na minha boca, no meu nariz. Meu Deus, eu inspirei sangue! E nem tenho a certeza de quem era! Entrei em pânico, empurrei-o e saí dali o mais depressa que podia.
C.R.: Está ferida de alguma forma?
S.R.: Não. Não entendo o que aconteceu. Só pode ser do Diogo. Mas entrei em pânico.
C.R.: Se não estava ferida porquê...
S.R.: Tenho pavor a sangue, está bem. Sabe a quantidade de doenças que andam por aí?
C.R.: Mas (silêncio) está a estudar medicina...
S.R.: E?
C.R.: (silêncio)
S.R.: Não acredito.
C.R.: O que foi?
S.R.: Sabe bem o que foi.
C.R.: Não estou a entender.
S.R.: Eu apanhei-o em cheio. Não se arme em desentendido.
C.R.: Não faço ideia do que está a falar.
S.R.: Sabe, sabe. Estava a olhar para o meu peito.
C.R.: Eu nunca!
S.R.: É incrível. Vem-me com essa conversa de ‘olhe para mim como o seu padre’ e depois não consegue tirar os olhos das minhas mamas.
C.R.: Por favor! Eu não (silêncio). Peço-lhe para não utilizar esse tipo de linguagem. E se (silêncio). O seu peito é importante para esta investigação. Foi identificado no hotel e eu estava apenas a confirmar...
S.R.: O meu peito é importante para a sua investigação? Que tipo de polícia é que você é? Mas o que é que se passa aqui?
C.R.: Peço-lhe desculpa mas repito, não tinha nenhuma intenção sexual. Estava apenas a cruzar informação, testemunhos de terceiros com a minha própria observação visual.
S.R.: E o que é que as testemunhas disseram exactamente?
C.R.: Deixe-me verificar as minhas notas. (silêncio). Posso citar-lhe palavra por palavra. (silêncio). ‘Boas. Jovens, firmes, bicos apontados para cima.’
S.R.: (silêncio) E confirma a descrição?
C.R.: (silêncio)
S.R.: Ontem adormeci ao som de gemidos e orgasmos múltiplos. Confesso que acordei com alguma... fome.
C.R.: Como é que esta porcaria se desliga?
S.R.: Sabia que apertando o pénis na sua base, prolonga a erecção e evita a ejaculação precoce?
C.R.: Mas não há maneira de esta merda deixar de gravar?
S.R.: Chupo como uma virgem ninfomaníaca.
C.R.: Meu Deus do céu, Sara. Não (silêncio). Eu sou o detective Rodrigues e nunca misturo trabalho e prazer e por isso recuso os seus avanços. Garanto que vou descobrir o que se passou e é essa a minha única preocupação.(silêncio) Acho que parou de gravar. Estamos seguros. Prepare-se para conhecer o Farol de Alexandria. Vá trancando a por
(silêncio) (fim da transcrição)

Sexo! Sangue! Intriga! Acontecimentos tão explícitos e reais que os produtores deste programa não permitem o seu acesso a crianças com menos de 18 anos! Não perca amanhã o próximo capítulo! A sua vida pode depender disso! Os produtores deste programa garantem uma lição de vida que nunca irá esquecer!

“Aníbal:... tivemos que trazer dezenas daqueles hooligans para a esquadra e tínhamos duas soluções. Deixar o miúdo no meio daqueles carecas ingleses (silêncio) ou metê-lo na mesma cela do João ‘Enraba o Cão’.”

segunda-feira, outubro 20, 2003

Novela em cinco actos

Capítulo I - Carlos e Óscar

Transcrição do interrogatório a Óscar Silva, trinta e dois anos, Bilhete de Identidade número 87465327. Membro da segurança do Hotel Ibis localizado no quilómetro trinta e dois da autoestrada Lisboa – Cascais. Investigação conduzida pelo Detective Carlos Rodrigues, distintivo número 197648 da Polícia Judiciária. Segunda-feira, dia 20 de Outubro 2003. 11h32

Carlos Rodrigues (C.R.): Bom dia. Sente-se, por favor.
Óscar Silva (O.S.): Bom dia, detective Rodrigues.
C.R.: Comece por me descrever os acontecimentos do dia 18 de Outubro, Sábado. Tente ser objectivo mas não esconda pormenores. Nunca se sabe se algum detalhe pode ajudar a investigação.
O.S.: Eram sete e vinte e três da tarde, eu estava na sala de vigilância...
C.R.: Sala de vigilância?
O.S.: Onde estão todos os monitores de observação. Temos câmeras em todos os andares e corredores, como sabe.
C.R.: Sim, claro.
O.S.: Sabe isso, certo? Um detective nunca deve conduzir um interrogatório sem estar preparado, certo?
C.R.: Continue por favor. Lembre-se, seja objectivo.
O.S.: Bem, como estava a dizer antes de ser interrompido (silêncio), eram sete e vinte e três da tarde e eu estava na sala de vigilância quando reparei em distúrbios no ecrã 69.
C.R.: Isso é uma piada? Ecrã 69?
O.S.: São as imagens do 4º andar, onde todos os quartos são alugados à hora. Para encontros, percebe?
C.R.: Está a dizer-me que o Ibis acolhe prostituição?
O.S.: Não, estou a dizer que acolhemos casais que queiram um quarto onde possam foder durante algumas poucas horas.
C.R.: Continue, por favor. Mas atenção! Não aprecio esse tipo de linguagem.
O.S.: (silêncio) Bem, então estavam vários casais a foder tranquilamente (silêncio) no 4º andar quando a porta do quarto 411 se abre e uma rapariga semi-nua...
C.R.: Defina semi-nua.
O.S.: Cuecas.
C.R.: Sem soutien?
O.S.: Sim.
(silêncio)
C.R.: E?
O.S.: Boas. Jovens, firmes, bicos apontados para cima.
C.R.: Estou a ficar farto das suas brincadeiras e insolências! Seja objectivo, lembre-se. Continue.
O.S.: Bem, esta rapariga, que tinha um par de mamas maravilhoso (silêncio) saiu a correr do quarto com a cara em sangue, aos gritos, fora de si.
C.R.: O que aconteceu depois?
O.S.: Desliguei o telefone e...
C.R.: Estava ao telefone quando tudo isto tinha lugar?
O.S.: O meu amigo André ligou-me para o telemóvel para dizer que tinha arranjado bilhetes para o jogo de ontem.
C.R.: Foste ver o jogo de ontem?
O.S.: Bancada central. Estive a um palmo de distância do Figo.
C.R.: (silêncio) filho da puta.
O.S.: Desculpe?
C.R.: Nada, continue.
O.S.: Bem, (silêncio) desliguei o telefone e corri para o local. Entrei no quarto 411 e vi os lençóis brancos manchados de sangue. Ouvi água a correr na casa de banho e encontrei um jovem a lavar as mãos. Reparei que tinha sangue na cara e que o lavatório estava também vermelho. Ele viu-me através do espelho mas antes que tivesse tempo de reagir, usei a minha lata de mace. Tive depois que reagir às tentativas de agressão e restringir o criminoso. Por fim, chamei a polícia que o levou para a esquadra.
C.R.: O que estás a dizer é que cegaste e espancaste o miúdo?
O.S.: Fiz o que me pareceu necessário para minha segurança pessoal e de todos os residentes do Hotel Ibis. E não aprecio que me trate por tu. É a segunda vez que o faz e não o admito.
C.R.: (silêncio) O que aconteceu à rapariga, sabe?
O.S.: Desapareceu. Não faço ideia. Não é a sua obrigação saber isso, detective Rodrigues?
C.R.: Sabes que mais, Óscar, é essa tua atitude de filho da puta que te fodeu na academia. Não penses que chumbaste apenas porque não consegues acertar um tiro num celeiro a dez metros.
O.S.: Vai para o caralho, ó Carlos. Se hoje és o Senhor Detective é apenas porque te ajudei a copiar no exame de investigação forense. Quem é que te passou as cábulas?
C.R.: Isso foi há muitos anos. Esquece essa merda, foda-se.
O.S.: Quem é que te passou as cábulas, caralho? Responde à pergunta!
C.R.: Este interrogatório acabou.
O.S.: Se houvesse alguma justiça no mundo, eras tu que vestias este uniforme amarelo. Filho da puta.
C.R.: Isto ainda está ligado?
O.S.: Quem é que te passou as cábulas, diz lá!
C.R.: Vou precisar da cassete com os acontecimentos de Sábado.
O.S.: Azar. Alguém gravou por cima.
C.R.: Estás a gozar.
O.S.: Não. Posso-te dar a cassete à mesma, se quiseres voltar a ver o jogo de ontem e o resumo da semana do Big Brother.
C.R.: Decepcionas-me como homem, Óscar. Nunca pensei...
O.S.: Vai para o caralho.
C.R.: Não, vai tu para o caralho! Porque a miúda nunca apareceu em nenhum hospital e o puto apenas apresenta pequenos cortes, nódoas negras e os olhos inchados. Agora diz-me, de onde apareceu todo aquele sangue? O que aconteceu?
O.S.: Não és o detective? Então detecta. Mais alguma coisa?
C.R.: Sai da minha vista.
O.S.: O prazer é meu. Beijos à Cristina.
(silêncio) (fim da transcrição)

Não perca amanhã o próximo capítulo com revelações chocantes! O que terá acontecido naquele quarto de hotel? Irá o detective Rodrigues descobrir toda a verdade? Uma estória que o irá seguir para o resto da sua vida!!!

Amanhã: “Sara:... quando dei por ela, tinha a cara cheia de sangue, na minha boca, no meu nariz. Meu Deus, eu inspirei sangue! E nem tenho a certeza de quem era!”

quarta-feira, outubro 15, 2003

Parou quando adormeci. Ou quando pensei que adormeci. Na verdade tinha morrido. Queria abrir os olhos mas eles não se tinham fechado, apenas deixado de funcionar. Não tenho medo da escuridão. Sou do tempo em que a electricidade não iluminava até à exaustão todo e qualquer canto. Sempre vi as sombras como um lugar onde podemos descansar um pouco, recuperar o fôlego, chorar e desabafar sem sermos vistos. Não acredito em monstros nem que o mal se esconde no negrume. Não, não sinto medo. Tenho pena, claro. De não voltar a ver os meus filhos. De faltar à promessa que fiz à Rosa. De não ter mais tempo para tentar perceber os netos da cidade, sempre demasiado ocupados com coisas que não entendo para os conhecer como gostaria. Mas não posso fazer nada. A morte é inesperada mesmo quando é esperada. É superior, exigente e nunca muda de ideias. Tenho alguns últimos desejos, queria beber mais um copo de vinho tinto, voltar a sentir o aroma sufocante da terra húmida e correr pela última vez. As saudades que tenho de correr! Acho que merecia um último minuto de lucidez, com dentes e sem agulhas, tubos e roupas estranhas que cobrem aquilo que já foi o meu corpo, para abraçar a minha mulher e segredar-lhe confissões, o orgulho e sorte que foi ter vivido ao seu lado. O quanto a amo. Não me lembro de alguma vez o ter dito, entendem? Era desnecessário por ser óbvio. Seria como afirmar que tenho dois olhos ou que está a chover. Mas agora era a forma perfeita de resumir mais de sessenta anos de vida numa só palavra. Amor - humilde, segredado, sem cartas, palavras, manifestações, emoções. Amor que se alimenta a si próprio, que existe porque todos precisamos de ar para respirar e também nunca fizemos nada por isso, que não tentei entender, que não importava complicar. Exijo uma oportunidade para rever tudo o que fiz e criei. Mas não está cá ninguém e a vida não me passa à frente dos olhos. A morte não tem livro de reclamações e viaja só, mas sinto-me capaz de lhe fazer frente. Não a quero contrariar, apenas dizer-lhe que se devia portar melhor. E então percebi. Voltei a ser forte.

segunda-feira, outubro 13, 2003

E agora, para algo completamente ridículo...

A Igreja continua empenhada em aproximar-se dos problemas reais da sociedade. O estimado cardeal Alfonso Lopez Trujillo, presidente do Pontifício Conselho para a Família, declarou à BBC que os preservativos deixam passar os espermatozóides e o vírus da sida. Fadéla Chaib, porta-voz da Organização Mundial da Saúde, mulher de bem e de boa educação, classificou as declarações de ‘falsas’, uma maneira bonita e óbvia de lhe chamar mentiroso. Mas talvez esteja a precipitar-se, suponho que o Alfonso (perdoem-me a confiança, sinto que conheço bem pessoas de má fé) fale por experiência própria. Será que o santíssimo cardeal teve o azar de engravidar alguma crente, mesmo tendo usado contracepção? O método é apenas noventa e nove por cento eficaz e só assim se percebe que ele considere que “os espermatozóides, bem como o vírus, atravessam facilmente a rede formada pelos preservativos.” Ou talvez conheça vários casos de gravidez não desejada junto do ‘rebanho’ e nem lhe passe pela cabeça que o facto de a Igreja ignorar toda e qualquer educação sexual dos seus tenha alguma coisa a ver com isso (os desenhos que explicam como aplicar o látex ao órgão sexual masculino podem ser muito explícitos). Algo há-de explicar declaração tão idiota, tão irresponsável, não é possível que a Igreja esteja tão desligada do resto do mundo, pois não? Porque isso seria desinteresse, desprezo, arrogância. Quando qualquer sistema vivo deixa de olhar para o lado e se fecha em si mesmo, atrofia. E estamos a falar da Igreja Católica, referência moral para milhões de pessoas, certo?

Recordo-me quando fiz a primeira comunhão, devia ter pouco mais de dez anos. Igreja cheia de pais orgulhosos e máquinas fotográficas, flores e jóias, filas de crianças a comungar tal como tinham ensaiado durante meses. Quando regressei ao meu lugar, sorria. Uma senhora, muito séria, por certo cheia de fé e de boa vontade, reprimiu-me: “Isto não é para levar a brincar!” Aprendi nesse dia a facilidade com que se confundem emoções. A beata encarou a minha face corada e os dentes que escapavam dos lábios como desrespeito. Era apenas vergonha. Nunca gostei de multidões. Não mais voltei a confessar-me ou a colocar a hóstia na ponta da língua.

Mas temos que apreciar o esforço que a Igreja Católica tem feito no sentido de cativar uma nova geração que cresce cínica e perdida. Sempre em nome de Deus e de Jesus, o Vaticano decretou trinta e sete novos actos proibidos nas missas. Segundo o jornal Público, no início de 2004 será proibido bater palmas, dançar, ter raparigas como acólitas ou ler outros textos que não os da Bíblia. Também não é aceite a celebração conjunta com ministros de outras confissões, como os protestantes. Uma decisão que, sem dúvida, calará todos aqueles que acusam a Igreja de intolerância, mas que me parece insuficiente. É necessário um acto que proíba a utilização de T-shirts estampadas, ténis ou saias. Todo o pecador tatuado deve também ser excomungado. E qualquer pessoa apanhada a falar na casa de Deus, rua. O que interessa se Santo Inácio, nos seus “Exercícios Espirituais”, considere que o “primeiro ponto é ver as pessoas, umas e outras; e primeiro as de face da terra em toda a sua variedade de vestuário e gestos, uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns a chorar e outros a rir, uns sãos e outros doentes, uns a nascer e outros a morrer...”. A Igreja não necessita disso. Querem crentes sérios, iguais, sem manifestações de pulso ou coração. Porque o que interessa é a cerimónia, nunca as pessoas.

sábado, outubro 11, 2003

Adivinhem quem voltou

No centro da pista de dança no “The House of Blue Leaves” está uma loira alta e escultural vestindo o que parece um fato de treino amarelo, é difícil dizer, as manchas de sangue tornaram a cor ambigua. Na mão direita uma espada, mas não uma espada qualquer: é uma espada Hattori Hanzo. Vermelho escorre pela lâmina. A Noiva, também conhecida como ‘Black Mamba’, espera. Num canto, uma mulher grita na visão do seu próprio braço decepado, afundada numa poça das suas próprias lágrimas e fluidos. Ouvem-se também passos, madeira que range, ruído, abelhas que se juntam para defender a sua rainha. Rodeada por todos os membros do ‘Crazy 88s’, o mais perigoso grupo yakuza, muralha que se levanta em defesa de O-Ren Ishii, a loira levanta o aço acima da cabeça, as duas mãos segurando o punho. Dentro de dez minutos, os que não estiverem mortos voltarão para casa incompletos. Quando se luta com um samurai e se perde um membro, seja perna ou mão, este pertence ao vencedor.

Quentin Tarantino garante que ‘Kill Bill’ é o verdadeiro sucessor de ‘Pulp Fiction’. Talvez esteja envergonhado pela sensibilidade que demostrou em ‘Jackie Brown’, como alguém que diz amo-te e se arrepende da exposição no minuto seguinte. A decepção crítica e comercial à sua prova de maturidade conduziu a um hiato de seis anos, a dúvidas sobre o seu talento, a boatos sobre um realizador que se acomodou ao próprio estatuto de génio, figura de culto, aquele que mudou a face do cinema contemporâneo. Sentado na sua sala de projecções privada, uma ganza acesa no cinzeiro, maratonas de filmes que se alargavam até ao amanhecer, Tarantino decidiu, como ele próprio confessa, ‘testar os limites’. ‘Kill Bill’ é puro exercício de estilo e, opinião corrente, o filme americano mais violento de sempre. Na minha opinião, um filme impar pelas constantes contradições que provoca. É um prazer culpado que nos invade, a gargalhada perante jorros exagerados de sangue que inundam o ecrã envergonha a maioria do público. É de conteúdo quase adolescente (duas mulheres lindas a lutar com espadas, o que se pode pedir mais?) mas é também um manual de referências cinematográficas – desde os ‘Westerns Spaghetti’ do Sérgio Leone até ao cinema de artes marciais dos irmãos Shaw, passando pela banda desenhada Manga. É para ser visto por muitos mas com constantes piscar de olho para apenas alguns. É feito para homens onde as mulheres são protagonistas, figuras de poder e ambição, vingança e crueldade masculina. É o altar que Quentin construiu para Uma Thurman apenas para obrigar a sua personagem a sofrer actos indescritíveis (como ser alvejada na cabeça pelo pai do filho ainda por nascer ou ser violada enquanto está em coma). É uma prova de amor pelo cinema de acção mas engana e trai o espectador ao dividir o filme em dois ‘volumes’, egoísmo máximo do realizador que se recusa a sacrificar pelo fã, aquilo que no fundo também é. É um filme de Quentin Tarantino sem diálogo, poderia ser um filme mudo, talvez a maior contradição de todas. É brilhante mas provoca saudades.

O-Ren Ishii, líder do submundo de Tóquio, também conhecida como Cottonmouth, antigo membro das DiVAS – Deadly Viper Assasination Squad -, espera a Noiva num idílico jardim japonês coberto de neve tão suave como algodão. Antigas colegas, agora inimigas, esta luta com um vencedor antecipado é tão graciosa como um número musical. Sabemos que a Noiva nunca será derrotada, mas o mérito da luta não pode ser questionado. O sangue de ambas será derramado mas apenas uma ficará de pé. O-Ren Ishii é o primeiro nome na lista de pessoas a matar. O último é Bill.

terça-feira, outubro 07, 2003

Crónica de um desastre anunciado (ou como hoje não tive tempo para escrever e decidi reciclar um velho texto)

Relatório Policial Nº211976

Acontecimento: Passava das cinco da manhã na cidade de Nova Iorque quando um táxi conduzido por um indivíduo do Médio Oriente que falava ao telemóvel (Nota do redactor: descrição corresponde a 99 por cento dos taxistas da cidade) embateu violentamente noutro táxi conduzido por outro indivíduo do Médio Oriente que falava ao telemóvel. (Nota do redactor: ver nota do redactor anterior). Do embate resultou um ferido ligeiro, um tal de T. R. S., Português, visto de jornalista número ADNV-213434 e empregado de mesa no restaurante Filipone (Nota do redactor: informar serviço de emigrações sobre possível situação de ilegalidade). A vítima apresentava um ligeiro corte debaixo do lábio e aparentava estar lúcido e de boa saúde (Nota do redactor: descobriu-se mais tarde que a vítima, na verdade, estava embriagado enquanto dormia sem cinto no banco de trás da viatura. Duas margaritas, três cervejas e dois Jamesons foram encontrados no seu sangue. Sim, os exames são assim tão precisos). Tudo isto antes de anunciar perante vários polícias e enfermeiros presentes na cena que, e passo a citar, "nunca tinha reparado que os elefantes podiam passear livremente de noite na Park Avenue. Olha, aquele faz-me lembrar uma antiga professora de jornalismo que tive no liceu" (Nota do redactor: todo o diálogo foi traduzido para português de forma a tornar mais fácil o seu entendimento por parte do leitor. Diz quem estava presente que não se distinguia uma única palavra do que a vítima dizia.) Poucos segundos depois a vítima, T. R. S., homem másculo e forte, desmaiou como uma menina a quem roubaram a mala. Consequência? Mais dois cortes, um ao pé da sobrancelha esquerda, outro no queixo. Perante esta tendência crónica de embater com a cara contra superfícies duras como alcatrão e ferro, os enfermeiros decidiram levar a vítima para o hospital mais próximo (Nota do redactor: Lennox Hospital, 68th e York). Durante este percurso, já com o pescoço imobilizado e a testa e os pés atados à maca, a vítima divertiu-se a ver as luzes e a ouvir a sirene: "Isto é um pouco como uma montanha russa: muitas luzes, gritos e apitos e nunca sabemos para que lado vamos virar." Mais tarde, o pânico apareceu: "A minha cara, a minha linda cara! E agora? A minha carreira de modelo? As gajas? Quero morrer! Eutanásia! Eutanásia! Eu exijo o direito à morte!" Cito a conversa entre os enfermeiros presentes: Anita - "Ele deve ter uma lesão cerebral grave". Juan - "Não. Já fizemos alguns testes e parece estar tudo em ordem." Anita - "Ele é o quê? Um idiota?". Juan - "Sim, é esse o meu prognóstico".
Ao chegar ao Hospital, a vítima estava silenciada (Nota do redactor: Anita, a enfermeira, nega estar envolvida no aparecimento de 500cc de morfina no sangue da vítima.) Na ER (Nota do redactor: Que, como os mais informados e todos os fãs do George Clooney sabem, significa Emergency Room) foram-lhe feitos todos os tipos de exames (coluna, sangue, pescoço, pernas, radiografias, vacinas para o tétano, QI). A vítima apenas chumbou em um. A confidencialidade deste relatório não me permite revelar qual. Mais tarde, ainda ligado aos monitores e a soro e com equipamento de reabilitação cardíaco ao seu lado (Nota do redactor: Não sei se estão a ver qual é o equipamento de que falo. É aquele dos filmes onde o médico coloca duas pás no peito do paciente e grita "200 volts - Clear!" e o corpo do coitado dá um salto até que ele acorda. Sim, esse equipamento) a vítima foi visitado por um cirurgião plástico que, depois de lhe tirar umas fotos às feridas (afinal a vítima sempre se tornou em modelo - para revistas médicas), coseu-lhe as três feridas (Nota do redactor: Resultados finais: 3 pontos abaixo do lábio, dez na sobrancelha e doze no queixo). Diz quem estava presente que não eram necessários tantos, mas que o médico perdeu a paciência com a perguntas do paciente (Exemplo: "Diz-me lá uma coisa, qual é o teu livro preferido, Frankenstein da Mary Shelly?). Depois, na sala das radiografias, vale a pena guardar este pedaço de diálogo para a posterioridade: T.R.S. (depois de tirar as chapas) - "Então, sempre vou sobreviver?"; Enfermeiro - "Não sei. Temos que esperar pelos resultados".
Quando estava tudo feito e dito, quando a vítima estava exausta, dorida e cozida, pouco mais houve para relatório. Há ainda a estória de como o jornalista português andava a contar às enfermeiras que as cicatrizes tinham sido feitos numa luta de bar contra três motoqueiros dos Hell Angels enquanto defendia a honra de uma menina, ou o facto de o paciente se ter decidido levantar para atender um telefone que não parava de tocar, apenas de calças, descalço e de tronco nu com fios ainda ligados ao peito e ao braço. Ou ainda como, às 11 da manhã, seis horas depois de chegar ao hospital, Tiago disse em voz alta: "Minhas senhoras, tem sido muito divertido, mas é hora de ir para casa." E como Mary, enfermeira irlandesa de cinquenta anos, lhe disse: "Keep your pants on, laddy. Just wait, will you?". Ao que ele respondeu, pescoço ainda sujo de sangue, cabelo despenteado e lábio inchado: "Mary, my love, my pants are everything I got right now". A estória continua sexta feira, quando a vítima voltar ao hospital para retirar os pontos. Até lá, T. R. S., jornalista português empregado de mesa num restaurante italiano, vai passar os dias sentado numa esplanada ao sol, cerveja na mão, a dizer para quem o quiser ouvir que não encontrou Deus no hospital; apenas uma moeda de vinte cinto cêntimos esquecida dentro de uma gaveta.

segunda-feira, outubro 06, 2003

Marlene Dietrich

Estava no sítio mais improvável, o único lugar onde a poderia encontrar. Era tarde, as ruas estavam desertas, os carros raros, os sinais vermelhos sem importância. As únicas lojas abertas eram de conveniência, asiáticos que preparam ramos de flores, nuvens de água, como orvalho, as pétalas húmidas das rosas, os ramos compostos, Nova Iorque é das poucas cidades onde se pode ser romântico de madrugada. Passo por pessoas com as mãos bem enfiadas nos bolsos, ombros encolhidos, postura defensiva perante o frio e os desconhecidos com quem se cruzam. Algumas têm mecanismos de alienação, música que as isola e torna vazia a rua onde passam. Outras estão entregues à preocupação de pagar a renda, à ansiedade de telefonar à rapariga que acabaram de conhecer num bar, ao sonho de conseguirem o papel para o qual vão fazer a audição amanhã, extras num filme independente ou personagens secundárias numa peça encenada Off Off Broadway. Spring Street é como um filme negro alemão, esquinas, sombras, fumo, portões metálicos, estradas vazias. Ela tinha que aparecer, este é o primeiro acto e todos os actores importantes devem ser apresentados nos primeiros minutos, mulher fatal, cabelos loiros, pernas longas e reveladoras.

Consigo apenas ver-lhe parte da face mas a sua beleza obriga-me a parar. Estava ali, junto de sacos pretos enormes, garrafas vazias de cerveja, provas de existência de vida, um altar urbano. A minha veneração é apenas a continuação de décadas de fascínio. Sei que não sou o primeiro a descobrir o Anjo Azul e sinto-me menos sozinho. Olhar para ela é como ouvir música dos Coldplay, manifestações do absoluto que nos fazem sorrir apenas porque sim. Já não tenho um gira-discos há mais de dez anos, mas naquele minuto, três da manhã horário de Nova Iorque, peguei no disco de vinil como se tivesse descoberto um tesouro. ‘Lili Marlene (sung in German) – Marlene Dietrich’.

De perto, perante a sinceridade dos pormenores, reparo no cigarro aceso, na sobrancelha arqueada, nos pés descalços, na mão estendida num palco de madeira. A fotografia é de Milton Greene, a edição da Columbia Records, do tempo em que se contava uma estória na contracapa - durante a Segunda Guerra Mundial, o Office Of Strategic Services pediu a Marlene Dietrich para gravar músicas americanas cantadas em alemão, milhares de soldados nazis dançaram ao som de ‘Taking a Chance on Love’. Os avisos ‘Tenha cuidado com os seus discos. Verifique a agulha do seu gramofone regularmente. Uma agulha usada fará uma reprodução pobre do seu disco. Uma agulha lascada irá causar-lhe danos permanentes’ parecem-me mais um aviso à condição humana do que preocupações ligadas ao vinil.

Alguém me perguntava qual a razão para viver em Nova Iorque. Esta é uma delas. Os pequenos brindes, as surpresas que nos aguardam. Esta cidade é como uma mãe indiferente com rasgos de bondade, uma pessoa com charme que nunca faz coisas charmosas e que me cansa, que me deprime e me encanta.

quinta-feira, outubro 02, 2003

A última hora

Boa noite. Eu sou o Filipe André Macedo
(pausa)
E este é o Jornal da Noite.
(câmara número dois)
É o acontecimento do ano. O mistério de Diogo Varela será desvendado dentro de três minutos. Sem perder tempo, estabelecemos contacto com João Carneiro, em directo a partir do armazém número quarenta e três da Doca de Lisboa.
(ligação em directo para o repórter de exterior)
É considerado por muitos a melhor campanha de marketing deste século, o segredo melhor guardado. Ninguém conhece os motivos desta conferência de imprensa. Um novo livro? Projecto para mais um filme de sucesso? A resposta dentro de poucos segundos.
(intervalo. Anúncio de gel de banho, seio, coxa, cabelos molhados) (regresso ao armazém)
Falta um minuto para as vinte e quinze, hora em que Diogo Varela se sentará nesta cadeira
(imagem de uma única cadeira branca, objecto único no meio de uma enorme superfície)
e revelará a Portugal aquilo que se imagina seja o seu novo projecto.
(câmara vagueia pelo espaço. A voz do repórter está em Off)
Diogo Varela, para quem tenha estado a dormir nos últimos dois anos, é actualmente a figura de principal destaque na cultura portuguesa. Assim o dizem os números: O seu primeiro livro, “Uma Vida e Meia” vendeu mais de quinhentos mil exemplares, número singular no panorama literário português. A sua interpretação em “Dias Bizarros” garantiu-lhe o prémio de melhor actor no festival de Cannes. Pela primeira vez, fala-se da nomeação para Óscar de um actor luso. O que se segue? Vamos descobrir dentro de trinta segundos. Pistas? Apenas uma enigmática frase: A Última Hora.
(a câmara foca as letras negras escritas na parede)
(Intervalo. Carro acelera numa estrada deserta. Condutor profissional, condições controladas, não aceitamos responsabilidades por futuros acidentes)
(a transmissão recomeça. Plano médio de João Carneiro)
É hora.
(a câmara afasta-se. Diogo Varela entra - descalço, camisa longa e calças brancas – e senta-se. Na sua mão um livro, que encosta a uma perna da cadeira. Zoom In. “The 25th Hour”, by David Benioff. Silêncio Total. Ausência de microfone.)

Vão-se foder! Vão-se foder e que se foda Lisboa e todos dentro dela.

Que se fodam as pequenas coisas que me fodem

Que se fodam os carteiristas do Bairro Alto, que me roubam o dinheiro e ainda se riem nas minhas costas enquanto bebem litradas de cerveja. Filhos da puta dos adolescentes, catorze anos, quatro piercings e três tatuagens, encostados aos carros a fumar ganzas enquanto contam os lucros da noite.

Que se fodam os arrumadores. Passei no meu exame de condução, obrigado, não preciso de ajuda para estacionar o carro num lugar com trinta metros de espaço. Vão tomar banho e deixem de coçar os braços na ressaca da heroína. Talvez assim consigam arranjar a puta de um emprego.

Que se fodam os taxistas, o Manel e o Zé Tó. O vermelho significa parar, ignorantes do caralho, aldrabões que cobram cinquenta Euros do Aeroporto à Praça de Espanha apenas porque o cliente diz “Please”. Qualquer pessoa com bigode, pelos no peito e uma corrente de ouro com uma cruz pendurada devia ser proibida de guiar. Os peões agradecem. Abrandem caralho! E quero que o Benfica se foda!

Que se fodam os travestis do Conde Redondo. Mamas enormes, cabelos loiros e pila. Foda-se, se querem passar por mulheres, pelo menos barbeiam-se. E que se fodam os “novos” paneleiros. Viciados em musculação, peitos depilados, creme hidratante, gel em excesso, bronzeado artificial. Fodam-se à vontade, façam broches uns aos outros na casa de banho do Lux. Mas peço um favor. Quando me virem passar, evitem lamber a puta dos lábios.

Que se fodam os paquistaneses com as suas flores enroladas em plástico descobertas nas lixeiras das floristas. Não, não quero “fro”. Tanto tempo em Portugal e ainda não aprenderam a puta da palavra? FLOR!

Que se fodam os brasileiros, peste de raça que nos invade sem piedade, dentistas, empregados de mesa, locutores de rádio, animadores gordos, cantores baratos. A existência do Roberto Leal é a prova conclusiva de que Deus não existe. Deco na selecção? Vão para o caralho. Que se foda a Globo, a capirinha, a picanha, o Caetano Veloso e o Jardel.

Que se foda o Jet Set, conjunto de bonecos de cera em constante pose para máquinas fotográficas que não existem. Que se foda o vosso novo sofá, os problemas conjugais, as férias, os casamentos, as festas, os programas de televisão. Pessoas sem alma, vazias e decadentes que usam calças vermelhas, camisola por cima dos ombros e risco ao lado. O país olha para vocês mas não é em admiração; é para se rirem da vossa figura. Dadinha, Titi, puta que vos pariu. Não valem nada.

Que se fodam as grandes coisas que me fodem

Que se foda a televisão portuguesa, responsável por uma geração de idiotas, pelo (ainda maior) embrutecimento da sociedade portuguesa. Podem dizer que apenas dão ao público aquilo que ele quer, mas desejo e espero que os vossos filhos cresçam burros, viciados no Big Brother, que nunca peguem num livro e que desejem ser famosos apenas porque sim. Talvez assim percebam o mal que fizeram. A televisão é uma responsabilidade pública. Faltaram a todas as aulas de ética? Deixo isto claro: Portugal é hoje um sítio horrível, também por vossa culpa. Parabéns!

Que se foda o Big Brother. Se querem ser actores, cantores ou a merda que seja, estudem, frequentem o conservatório, inventem talento. Não percebem que são como os macaquinhos no Jardim Zoológico? As pessoas apenas querem ver quando é que começam a foder e a atirar merda uns aos outros.

Que se fodam os cromos da bola, profissionais ou não. Ignorantes com dificuldade de expressão. Sabem que mais? Podem ganhar o dinheiro que quiserem. Vão continuar a ser atrasados mentais com jeito para o pontapé. Arruaceiros, mimados, milionários com maus cortes de cabelo. Usam as quinas nacionais no peito com a mesma indiferença com que são patrocinados pela Nike.

Que se foda a impunidade, a facilidade com que se quebra a lei, o orgulho de não pagar as multas de estacionamento, as amnistias do Papa, os tribunais atulhados, os juízes mediáticos, os advogados em fatos azuis e camisas às riscas, o orgulho de sermos o único país do mundo que não condena os terroristas; fazemos deles celebridades, aparecem em talk shows, são convidados para festas, contam estórias de terror como se fossem anedotas.

Que se fodam as rotundas e os centros comerciais, não somos mais felizes apenas porque andamos às voltas enquanto comemos batatas fritas com maionese e admiramos as roupas que nunca teriamos coragem de usar. Horas sem ver o sol, milhares de lugares para estacionamento, filas para o cinema, pipocas e coca-cola de meio litro.

Que se foda a cultura portuguesa. Sempre os mesmos filmes, livros, música. O estado investe em realizadores de noventa anos mas para a nova geração já não há dinheiro. Que se fodam as cunhas, os amigos, as pancadinhas nas costas, as pessoas que se conhece, o pé na porta. Livros de crónicas coladas a cuspo, top da Fnac, que se fodam todos aqueles que utilizam a santidade do livro como prolongamento da carreira de modelo. Que se foda o Diogo Morgado, plagiador e estrela de cinema.

Que se foda a nova geração, cambada de acomodados, sem força nem vontade de lutar por nada. Bêbados sociais, drogados de conveniência, sem coragem sequer de usar o sexo como método de alienação. Que se foda o purismo, a vergonha, a descriminação, os olhares de lado, a coscuvilhice. São jovens caralho, não tenham medo de ofender, de ser quem são. Acordem!

E, por fim, que me foda eu.
(Diogo Varela levanta-se)
Que me foda eu, adepto do insulto fácil, hipócrita, mentiroso, vida dependente de holofotes e sorrisos. O que interessa que não acredite em metade do que disse? Isto é tudo um espectáculo, certo? Estou em directo na televisão certo? Esses telefones já começaram a tocar?
(Diogo Varela levanta a camisola. Zoom in no revólver.)
Não percebem? Esta é a nossa última hora. E estamos a mijar nela.
(gritos de pânico. A câmara tomba, a imagem torna-se horizontal)
Eu por mim, eu desisto. Não quero mais. Recuso-me. Que me perdoem os ofendidos.
(Diogo abre a boca, encaixa o revólver entre os dentes. Disparo. Uma mancha vermelha alastra-se pela roupa branca).
(Interrupção. Ecrã negro. “How are you?”, vermelho, pessoas bonitas na praia, sol, mar, alegria.)

Duas horas e trinta minutos mais tarde, a transmissão foi repetida no Último Jornal. Nos próximos três meses, foi possível rever o acontecimento na televisão portuguesa por trezentas e vinte e quatro vezes. Quase três vezes por dia.

Três anos depois, surge o rumor de que Diogo Varela está vivo e reside em Miami.

quarta-feira, outubro 01, 2003

Glove job

“Honey, what’s this?”
Susan has been living in my – sorry – our apartment for three hours now. We’ve been dating for four months, sleeping together the last three and thinking about marriage since last week. I didn’t know about that last part. That one, Susan told me while she occupied the bathroom closet, very much like the Germans invaded France in the Second World War. Only more coldblooded. Gels, creams, shampoos, lotions, color-defending foams, substance constructive treatment, unscented Carefree thong pantiliners with stay-put wings, heat activated light conditioning mist leave-in conditioner that improves condition of all hair types (who writes this stuff anyway?). At least I’ll have something to read when I use the john. Yes, because those old man magazines with barely dressed pop stars on the cover are gone. They are out of here. My used razor blades never had a chance too. And I’ll miss my cheap hotel perfume collection. But I have no problem with that, really. I keep telling myself that I love her. And I think I really do. So I let her go, doing her stuff around the house. Putting things in their place. The right way. I know that the used shocks have to go into the laundry basket, of course they do. But I had no idea that gloves and scarves should go together in the same drawer. Who made that up? That’s when she found it. And that question was asked.
“Honey, what’s this?”
‘This’ was an old glove. Black, used, kind of dirty – but in a charming way, honest – with random white spots. 60% acrylic, 25% wool and 15% polyester. One of a kind. Literally. The left pair was long gone. But I didn’t had time to answer
“Where’s the other one?”
Well, I never did use the other one. Let’s just say that it’s my good luck glove and leave it at that. Please?
“Why was it kept with the nude magazines under your bed?”
Believe me, it’s a long story. You don’t want to know.
“Oh my God. Don’t tell me…”
What?
“Did you…? Now that I think of it, it smells funny.”
It does not. Come on, give it back.
“Only if you confess”
Ok, ok. It’s my jerk-off glove. What can I say? You caught me. Now, give it back.
“That’s kind of sick. Why didn’t you use your bare hand? Peter, are you a Michael Jackson fan?”
Yes, that’s my name, Peter. And no, I’m not a Michael Jackson fan. My father once caught me in a hand-job mode. He told me that jerking off would give callous and cause severe red spots. I was thirteen. I loved doing it, so I started using a glove. I found later that my father was full of shit - like we all eventually do. I tried without it but missed the harshness. You know, sex, pain, it’s all in the same game. So I kept it. Happy? Now, give it back.
“No”
No?
“No. I want you to get rid of it!”
What? No! Why? I have fond memories of that glove. Isn’t it obvious?
“Look, we’re in this together. If we are going to work, I need all your love. I won’t accept less than that. Masturbation is a selfish thing. You do it alone, with your fantasies and dream-fucks. What’s my part in that? You don’t need me for that! I can’t accept it. You have to stop loving yourself and start loving us. Do you understand?”
Do I have a choice? Yes, you’re right. Between you and me, she’s always right.

Later on, at night, we went to the place where we first met. A bench in Central Park East. On that day, several months ago, I seated next to her and said, out of the blue, that we could be an awful love story. She smiled and won me over with her white teeth and bright eyes. She told me latter that she left her glasses at home and her sight was tired. I loved her ever since. Now, I feel like my childhood is being left behind with the glove. I kneeled and carefully put it on the floor. I left it there, in front of that bench. I became officially someone more interested in giving satisfaction that having it. Strange idea, isn’t it? To love her so that I’m willing to let go of the easiest of pleasures? I guess I’ll have to get used to it. Susan was proud and happy. She knew that I was a little sad from the farewell, so she whispered in my ear
“Don’t worry. I give a mean hand-job. You’ll see. I never did it before because I didn’t know you liked it so much. You are going to be blown away!”
The truth is – don’t get me wrong, she is quite good - something is missing. That nice roughness is just not there. Months later, I asked if she would mind wearing a glove, a new one, once in a while. She said she would think about it. Yes, I do love. Susan, that is.
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